Depoimentos de agentes comunitários de saúde na linha de frente de combate a pandemia

“Eu peguei covid, todos os meus colegas pegaram covid no meu trabalho. Poucos foram afastados.”

Yolanda Oliveira Agente Comunitária de Saúde (ACS) que trabalha em uma favela de Bangu, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro


Na comunidade, logo no início da pandemia, aconteciam muitas mor­tes. A gente saía na sexta-feira e via muitos casos pipocando e na segunda-feira chegava e tinham ocorrido cinco óbitos. E era uma coi­sa que acontecia toda semana. Era muito. “Nessa semana morreram quantos? Quatro”. Isso na comunidade. E isso toda semana começa a assustar, porque estava acontecendo direto. Toda semana um, dois, três, quatro óbitos!

Agora deu uma parada nessa questão dos óbitos. Não ouço mais tantos casos de óbito, porém, eu não vi quarentena em momento algum na comunidade. Eu não vi quarentena, não teve. Tudo continuou funcio­nando normalmente. Foi complicado para quem trabalhava fora por­que teve problemas com transporte. Algumas pessoas foram manda­das embora, outras pessoas tiveram dificuldade de chegar ao trabalho. Mas dentro da comunidade nada mudou. Pelo contrário, as crianças ficaram sem escola, mas não saíram das ruas. As crianças saíram da escola e passaram a ficar jogadas na rua, brincando.

A maioria dos trabalhadores continuou trabalhando, aqueles que não tiveram como parar seguiram trabalhando. A grande maioria da co­munidade continuou trabalhando normalmente, tendo uma dificul­dade ainda maior que foi a diminuição de transporte, de ônibus. Isso oprimiu mais ainda a população, porque a quantidade pessoas era a

mesma tentando se deslocar e não conseguia. Eu via as vans abarro­tadas de gente. No início da pandemia, quando se falava muito que era preciso evitar aglomerações, o transporte estava superlotado, pesso­as tossindo dentro do ônibus lotado.

Eu ouvi relatos também no comércio e nos postos de gasolina, pes­soas falando que tiveram Covid, que muitos tiveram e nem sabiam o que era, teve-melhorou-acabou. Outros foram vendo alguns familiares morrerem. “Tive uma gripe muito forte” – ouvi dizer – mas não fize­ram teste, não foram à clínica, principalmente os jovens, as pessoas mais novas, sem comorbidades, não hipertensas, não diabéticas… Es­sas pessoas tiveram Covid, ficaram mal em casa, mas achando que era uma gripe, que pegou e acabou. E aí vinha o pior: não tiveram liberação do trabalho, ficaram um ou dois dias em casa e voltavam a trabalhar.

Eu, infelizmente, perdi um parente e uma colega perdeu a mãe. Infe­lizmente tivemos essas perdas. Meu parente era do grupo de risco de todas as formas: idoso, diabético, hipertenso, cardiopata. Foi parar no hospital e lá foi entubado. Um dia antes dele morrer acabou a luz no hospital, e no dia seguinte veio a notícia do óbito.

Eu peguei Covid, todos os meus colegas pegaram Covid no meu traba­lho. Poucos foram afastados. O acesso a testes foi muito complicado. Eu fiz meu teste por meios próprios. Deu positivo. Eu tive poucos sin­tomas. Eu fiquei mal, mas parecia mais uma arbovirose, não parecia nem gripe. Para mim não foi nem um resfriadinho foi mais uma dor no corpo, uma indisposição, o corpo pesado, como se eu tivesse pega­do Chikungunya. Eu senti muitas dores nos ossos, no corpo, mas eu tive pouca tosse; não tive falta de ar; tive muito cansaço físico, muito cansaço como se estivesse anêmica. Então eu fiz o teste, deu positivo, aí eu fiquei em casa por conta disso e quando eu voltei à minha clínica eu percebi que eu não tinha sintoma suficiente aos olhos da clínica para fazer o teste. Vi que provavelmente lá eu não conseguiria fazer. Isso naquela época, agora estão distribuindo testes aí porque sobrou,estão distribuindo testes agora em todas as clínicas. Mas naquela época, se eu não tivesse corrido para fazer os meus exames prova­velmente eu teria voltado para o trabalho e contaminado o resto dos colegas que estavam lá. Muitos colegas não tiveram essa iniciativa de fazer o teste e continuaram trabalhando mesmo com Covid. Então foi essa piada, suporte quase nenhum, foi complicado.

Logo no início da pandemia, não foi falado que nós não tínhamos de ir para a rua. Por exemplo, se fizessem alguma exigência de fazermos uma busca ativa, nós tínhamos de ir. O Equipamento de Proteção In­dividual (EPI) era utilizado apenas para ir à rua, na clínica não. Foi um processo com várias situações difíceis: nós ficamos sem alimentação; os trabalhadores com comorbidades só foram afastados tardiamen­te por pressão do sindicato. Onde eu trabalho, nós mesmos traçamos uma estratégia de como nós íamos fazer para não ir para a rua, não foi uma coisa pensada e planejada. Sabe como é patrão, né? Não é uma coisa que surge deles, surge da gente. E os trabalhadores com comor­bidades estão afastados até os dias de hoje, não foram chamados de volta ainda não. E nós que não temos comorbidades tivemos as co­branças e as exigências de trabalho triplicadas, muita sobrecarga de trabalho. Não houve nenhuma mudança com a pandemia em relação às exigências de produtividade.

Muita gente deprimida, não só onde eu trabalho. O relato dos ACS é que eles ficaram muito mexidos emocionalmente, vendo pessoas do­entes por todos os lados; sendo exigidos da mesma forma, mas agora com menos pessoas para dar conta, com equipes reduzidas. E a gen­te o tempo todo com aquele sentimento de dar graças à Deus de es­tar trabalhando na pandemia para ter o que comer, porque muitos de nós tivemos familiares (esposos) que foram mandados embora e a situação da própria alimentação ficou difícil para muitos. Então quem não conseguiu ser afastado por comorbidade tinha esse sentimento de que tinha de dar conta, tinha de trabalhar pela incerteza de saber o que vai ser dessa pandemia. Vai haver mais cortes?

Estamos passando por vários tipos de dificuldades – o desemprego – e a gente não sabe o que nos espera. Estamos com temor do que pode acontecer. E nós temos essa situação de que em alguns lugares o ACS é efetivado e em outros não. Nós já tivemos essa promessa diversas vezes, sempre dizem que sem o Agente Comunitário de Saúde não tem Estratégia de Saúde da Família, porém, tem essa desvalorização. Recentemente

tivemos também mudanças de gestão e redução salarial, tínhamos alguns benefícios e agora não temos mais. Infelizmente, é até meio desanimador!

“O contexto político afastou a atenção básica das populações vulneráveis nesse momento tão importante”

Maria do Socorro Moreira Agente Comunitária de Saúde, moradora de Santa Cruz


Eu trabalho como funcionária de uma clínica da família de Santa Cruz há mais de 15 anos. Na época, a Comlurb contratava os agentes co¬munitários através das associações de moradores que os ressarciam. Mesmo com as mudanças no contrato sigo prestando serviço para o sistema de saúde da prefeitura do Rio de Janeiro, onde atualmente os contratos são divididos em dois tipos: os funcionários com ensino médio que prestam serviços para uma terceirizada e os de ensino su¬perior que trabalham para uma “quarterizada”. Muitos dos direitos dos funcionários, sem regime CLT, sem direitos trabalhistas, sem a possibilidade de licença em caso de acidente e de doença.

Os funcionários receberam, recentemente, com o término da última licitação, um comunicado de que a nova contratação se dará basica¬mente através de uma “sociedade” com os “prestadores de serviço”. Diante dessa situação, muitos trabalhadores não quiseram dar conti¬nuidade e evadiram de suas funções, o que significa que a população poderá ficar sem atendimentos. Esse é um problema muito grande que vem sendo enfrentado na Zona Oeste durante a pandemia, muitas pessoas sem atendimento médico e precisando se locomover pela cidade para serem atendidas.
Para mim, o começo da pandemia foi extremamente desgastante, pois comecei a lidar com a ansiedade, sabendo que os profissionais da saúde estavam mais expostos ao vírus, expondo nossas famílias; lidando com a desinformação sobre a doença e sobre como agir; limitando os atendimentos ao público e vendo companheiros sendo afastados por contraírem a doença.

A falta de exames e de equipamento no território da 5.3 (região admi¬nistrativa de Santa Cruz) impactou bastante nos atendimentos ini¬ciais. Os funcionários do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) estavam na linha de frente da abordagem dos pacientes para orien¬tações antes deles entrarem na área técnica com os enfermeiros. Os sintomáticos eram direcionados ao atendimento médico. Os assinto¬máticos ou os que tinham consultas agendadas tiveram seus aten¬dimentos canceladas para que fosse atendida a demanda de sinto¬máticos respiratórios que eram encaminhados para o consultório de resposta rápida, chamada também de “Sala do Covid”.

O contexto político para os profissionais da saúde – que driblam a des¬valorização da profissão e a falta de estabilidade -, afastou a atenção básica nesse momento tão importante das populações mais vulnerá¬veis, que necessitava de um atendimento gratuito de qualidade. Isso impactou na saúde da população e na dos próprios profissionais que também utilizam o Sistema Único de Saúde (SUS).


Os interesses políticos na gestão das unidades de saúde influenciam diretamente nas licitações, capacitações e reciclagens dos profissio¬nais; esses interesses políticos também impactam na vida das pes¬soas que necessitam dos atendimentos, sobrecarregando aqueles que seguem trabalhando com um quadro reduzido de profissionais e equipes, que mesmo fazendo o seu melhor não conseguem garan¬tir o que é direito da população. Essa situação muitas vezes gera um mal estar entre as pessoas, que ficam insatisfeitas e algumas vezes agressivas, pois não entendem os contextos das administrações e descontam nos funcionários.

Em minha opinião, tendo em vista as eleições e uma possível mu¬dança na gestão, melhorias poderiam ser feitas nas unidades bási¬cas de saúde com o objetivo de melhorar os serviços na Zona Oeste; por exemplo, uma reorganização de atendimentos, ampliação dos quadros de funcionários para suprir o apoio e acompanhamento à saúde das famílias, valorizando as áreas de fisioterapia, psicologia e odontologia, que são áreas que fazem com que as pessoas pre¬cisem se locomover por grandes distâncias para conseguir atendi¬mento. Muitas dessas pessoas não possuem condições financeiras para manter um acompanhamento, ou muito menos se locomover em transportes públicos de má qualidade que não atendem pessoas com deficiências e doenças que impossibilitam a mobilidade e que não têm como arcar com um transporte particular.
Gostaria de dizer que precisamos enaltecer os profissionais de saúde que, muitas vezes sobrecarregados, principalmente no período grave da pandemia de Covid-19, continuaram atuando com ética, respeito, amor e luta, procurando minimizar os impactos de algumas falhas no sistema.

“A pandemia para o agente de saúde foi uma coisa que trouxe medo de trabalhar”

Simvione Monteiro, Moradora do Jacaré


Meu nome é SimVione, sou Agente Comunitária de Saúde e desde o dia 8 de Maio, eu fui afastada por conta das comorbidades e do novo coro­navírus. Sou hipertensa e há mais ou menos 5 meses ando investigando cardiopatia pois vinha sentindo fortes dores no peito. Por conta disso, eu acabei sendo afastada. Além de ACS, eu trabalhava com TRT de enfer­magem no hospital à noite.

Eu venho trabalhando em casa, em home office, com a minha equipe. Venho tentando ao máximo ajudar as meninas durante esse período que tem sido tão difícil para quem ainda continua na linha de frente: elas me mandam os números de telefone para que eu possa ligar para as pessoas as quais eu assisto.

Fiz um grupo de mães, porque nesse período, mesmo estando em casa e acompanhando tudo que acontece na clínica com a minha equipe, eu tenho visto que o número de mães vacinando seus filhos tem sido muito baixo. Elas estão com medo de levar os filhos até a unidade de saúde, apesar disso, muitas delas organizam e participam de festas.

A pandemia me trouxe bastante medo. Meu irmão mais velho trabalha na UPA do Engenho Novo, lá ele perdeu várias pessoas. Ele está sempre falando e avisando: “Fiquem em casa porque a pandemia ainda não aca­bou. Usem máscaras porque a pandemia ainda não acabou”.

O meu trabalho eu tenho estendido para além da clínica da família por­que eu não tenho conseguido ir à clínica por conta de ter sido afastada. Então eu trabalho dentro de casa, com a presença de jovens que ficam dentro da minha casa, porque eu tenho filhos adolescentes em casa. En­tão a casa acaba ficando cheia de adolescentes. Nesse momento, eles se acham super heróis, mas eu fico falando e sempre mostrando os relatos das pessoas da idade deles que tiveram Covid, de pessoas mais velhas que os filhos trazem pra casa. Eu tenho trabalhado com informação.

Não tenho vivido esse momento de pandemia apenas como profissional, nem como técnica de enfermagem, nem como agente de saúde. Tenho vivido como uma moradora de comunidade que continua vendo as ruas cheias, pessoas sem máscaras, festas, crianças na rua.

Eu tenho um sobrinho que é paraplégico e apenas três pessoas estão no cuidado dele para que a gente não leve a Covid-19 para ele. Eu tenho uma sobrinha que é enfermeira na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), que nos causa muita preocupação, mas eu tenho vivido a Covid-19 tam­bém através dos olhos deles, que trabalham na UPA; do meu irmão que também trabalha lá e do meu sobrinho que está dentro de casa. Nós não entramos na casa deles sem máscara e não é qualquer pessoa que tem visitado eles neste momento. A gente tem vivido bastante isolado e ele tem sentido muito nossa separação, mas neste momento é preciso.

Como eu estou afastada do trabalho e da rua, eu que tenho manejado com mais frequência os cuidados com ele. Eu não esperava viver isso. A gente tentando todos os dias sobreviver nesta luta contra a Covid-19, porque é difícil acordar e saber que perdeu um amigo ou alguém que você já viu ou atendeu na Clínica; ou que alguém com quem você trabalha se foi.

A pandemia me fez trabalhar em home office e eu nem sabia o que era isso, não sei nem falar esse nome direito. A pandemia fez eu olhar pra mim e ver que eu precisava me cuidar e precisava de ajuda para melho­rar. Agora eu estou tentando fazer uma atividade física de manhã com o professor da academia carioca, daí a importância de termos espaços pú­blicos de lazer. O Estado tem que oferecer isso pra gente! Estou tentando comer melhor, porque no começo eu estava comendo desesperadamente

por conta da ansiedade. Agora estou tentando buscar um tempo pra fa­zer comida para o meu sobrinho que é paraplégico. Aliás, ele não está indo fazer terapia mais porque a faculdade que ele fazia fechou e não re­abriu. Nós acabamos fazendo em casa do nosso jeito, o que nem sempre é o melhor, mas a gente faz o que pode.

Estamos vivendo um dia de cada vez, temos medo de planejar o futu­ro. Tenho tentado ajudar a minha equipe, tenho sofrido muito com as meninas com quem trabalho quando vejo que temos metas para bater e somos em 4, sendo que estamos adoecidas, e ainda tem as férias de cada uma. As pessoas que estão trabalhando estão trabalhando em dobro, se desdobrando, sofrendo. Eu sempre falo pra elas me pedirem ajuda. Eu fico angustiada querendo ajudar, peço para elas me ligarem. Fico muito preocupada delas estarem sobrecarregadas e adoecerem como eu adoeci também. Eu fiz grupo de WhatsApp para tentar organizar minha parti­cipação no trabalho.

Uma das coisas mais importantes dessa pandemia é que ela veio para mostrar que nós dependemos sempre um do outro, embora eu quisesse ajudar mais, infelizmente estou limitada por conta de comorbidades. Eu fico angustiada porque queria ajudar mais a minha comunidade, mas eu ligo, envio mensagem, converso, tento dar atenção, enfim, s ó paro quando as minhas comorbidades me obrigam a parar.

Mas eu sempre tento explicar às pessoas o que está acontecendo, o que é a pandemia. Tento falar com as mães sobre a importância das vacinas, do porquê delas precisarem vacinar seus filhos. Para além da Covid-19, existem outras doenças já tratáveis no país, cujas vacinas curam e elas não podem esquecer. Não é só no Jacarezinho, é no Rio de Janeiro inteiro. O número de adesão vem sendo bem baixo. A pandemia para o agente de saúde foi uma coisa que trouxe medo de trabalhar, dor, porque a gente sabe que os nossos assistidos estão enfermos ou morreram e a gente tra­balha com o coração dilacerado, tentando fazer alguma coisa, mas nos vemos impotentes, muito impotentes. Ainda assim, eu tenho esperança.

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