Eu vejo o anseio, a fome por vida, o desejo por voz, a sede por escuta, nos becos, vielas e esquinas, no corpo preto cintilante que subverte e afronta as perspectivas colocadas sob sua face negra. Esta é uma carta para mim e, principalmente, para meus irmãos da diáspora que estão sob a sentença cruel do Estado de Exceção que limita nossas possibilidades de existir e ser; que poda todas as promessas de continuidade do sonho almejado por nossos ancestrais. Hoje o Jacarezinho sofre o luto dos nossos meninos colocados à morte pela lógica punitivista-vingativa que se isenta da responsabilidade da política da negação de direitos e criminalização da pobreza, que coloca nossos filhos na passagem do sistema penal e retira das escolas, centros culturais e espaços de insurgência.
O sistema penal tem sido usado desde a falsa abolição do 13 de maio como ferramenta de sanção e represália aos que ousaram romper com a lógica colonial e aos que resistem a este plano da branquitude, estão para padecer na morte em vida ou executados da forma mais cruel e brutal. A juventude negra é criminalizada por sua vivacidade, por refletir o espelho da fusão completa entre guerra e política, sendo esta, pautada sob a lógica do racismo enquanto sistema político de poder e motor mobilizador para a fúria branca contra corpos negros vivos.
Nossa existência enquanto seres plurais, insolentes e lúcidos do lugar destinado às nossas vozes e, crentes da nossa capacidade em romper com os limites estabelecidos e emancipar-nos do cancelamento de nossa existência, nos erguemos juntos pelas nossas vidas.
Imagem: Douglas Dobby
Quando o Estado nos lembra que nossas vidas estão privadas de humanidade e garantia de direitos, e que nosso bem viver precisa ser conquistado, nossas mortes são mortes políticas, e permanecer vivo se torna um ato político sublime. A juventude negra viva é um ato político. E, para que o amanhã seja renovado em existência, a nossa vitória estará pautada em amor aos nossos e ódio àqueles que nos querem atormentados.
Este chamado é um grito de dor, fúria e amor, afinal, a dualidade não está pautada somente em contradições, mas na dádiva de revoltar-se contra nossos inimigos, sem perder nossa capacidade de amar-nos uns aos outros, rompendo o primeiro projeto de destruição interna do nosso povo ao cortar todos os nossos laços de afeto para enfraquecer nossas articulações. E nesta fúria contra o ódio que abomina nossos corpos, acolher nossos irmãos em amor será a maior petulância cometida àqueles que nos querem isolados e desarticulados.
Imagem: Bruno Itan
Este é um chamado para que haja amor em nossas construções internas e que o afeto preto seja caminho para o desmonte da casa branca, e que para ela somente sobre impetuosidade. Que nossos abraços sejam calor e combustível para a luta incessante por nossas vidas, e que vitoriosos, um dia comemoremos a não mais necessidade de resistir. Enquanto isso, nos desejo sonhos, muitos sonhos. É a nossa capacidade de pensar um novo amanhã que irá nos manter vivos e, para isso, seguiremos juntos; para que haja futuro para a juventude preta e favelada. Esta carta é um impulso aos meus irmãos e irmãs pretas que se veem cansados e impotentes nessa luta desleal contra o Estado de ódio. Não recuaremos. A vida e o legado dos nossos está em nossas mãos, vozes e corpos. Enquanto tivermos forças, seguiremos, e quando faltar, nos aquilombemos para marcharmos juntos rumo aos nossos sonhos.