Para eu começar a falar da minha história, tenho que primeiro abordar a história da minha querida mãe. Era menina do interior de Belém do Pará, descendente de índios e vivia com a família, pai, mãe e cinco irmãos. Das histórias que ela poucas vezes costumava contar, o que a deixava contente era relembrar da infância. Contava que vivia livre, brincou muito, subia em árvores, ajudava seu pai a fazer farinha no tacho, secar o amido de aipim e etc. Dava pra ver a nostalgia que sentia daquela época, seus olhos marejavam em lágrimas.
Ela contava que quando tinha por volta dos seus quatorze anos, um casal chegou até a sua família e conversando com seu pai, convenceu-o de que ela viesse para a cidade grande, o Rio de janeiro, com o intuito de ser “alguém na vida”, lhe daria casa, estudo, roupas e ainda mandaria um dinheiro para a família se manter.
Então, no ano de 1950, aquela jovem colocou em sua mala seus sonhos, chegando aqui no Rio de Janeiro. Não passou de uma menina empregada doméstica que trabalhava até aos domingos, descansando só quando os patrões dormiam. Não tinha para onde ir, dormia no emprego. Nunca colocou o pé na escola, não sabia ler e nem escrever. Por que os patrões a quereriam alfabetizada? Isso não era a prioridade. E assim foi sua vida, trabalhando de domingo a domingo e de vez em quando, num momento de folga, se distraía com as colegas que tinham histórias parecidas com as dela.
Essa mulher, carregada de frustrações, transferiu para o “amor”, o “casamento”, seu sonho de realização, principalmente o de ter sua residência. O sonho da “casa própria” sempre estava no sonho de consumo da minha mãe, mas coitada, com cada companheiro que se envolvia engravidava. Sete filhos, essa foi a quantidade da sua prole; até um filho do patrão ela tem, se deixou levar na conversa, foi usada e abusada.
Com essa quantidade de filhos, sem casa própria, alguns daquela turma foram para o orfanato, outra parte para pessoas que cuidavam de crianças. Eu fui uma das crianças que foi para o colégio interno. Queria entender as poucas visitas, por que eu não ia para casa igual às outras crianças. Logo depois que saí do orfanato, lá pelos anos de 1984 descobri o porquê. Minha mãe não tinha onde abrigar os filhos, alugava um quarto só para ter um pouco de liberdade e privacidade; o contrato estipulava que não poderia ter crianças no local, era para pessoas solteiras.
Essa questão do sonho da casa própria era para mim um objetivo, pois vivi minha infância e adolescência vendo minha mãe sonhar e se frustrar em relação a isso. Quando sai do orfanato, me vi num quarto com mais cinco irmãos. Eu tinha uns dez anos de idade, aos quatorze já estava namorando, aos quinze já era mãe, com vinte e dois já carregava a responsabilidade de criar e educar três crianças. A única diferença entre eu e minha mãe, é que eu sabia ler e escrever, no mais, também vivia de favor numa casa do tio do pai das crianças.
Também fiquei com a pretensão de ter um lugar para chamar de meu lar, para dar mais garantia para os filhos de que não iriam ficar desprotegidos na falta de nós pais. A relação matrimonial não era lá das melhores, nas idas e vindas do relacionamento apareceu uma oportunidade de “ouro” que iria realizar o sonho que no momento era meu e que durante anos foi o da minha mãe.
Um político da localidade comprava áreas, tipo sítios, onde o proprietário queria se desfazer. Comprei um lote no ano de 1997, mas não fui uma das primeiras a adquirir o terreno; fui uma das quarenta primeiras na época. Ali começava minha alegria, pois o loteamento seria no mínimo 86 casas, com água, ruas asfaltadas, luz, etc. As máquinas trabalhavam e a realização crescia. Abriam ruas para nivelar, já estava imaginando um bairro pavimentado com praça e acessível para nós moradores. Na época, tudo parecia muito perfeito com as obras, mas era maquiagem.
Imagem: Acervo pessoal Maria Elizabeth Trindade
Aqui, o nome dado para a comunidade é Vale do Canaã, mas costumo dizer que é Faixa de Gaza porque dá pra ouvir nitidamente os sons dos tiros, pois fica entre o morro de Camará e a Vila Kennedy. De vez em quando a ronda circula para ver como está o território. Mas não dá para fazer morada na localidade, é uma área aberta de fácil visibilidade para emboscadas; nada de tráfico é fixo.
Nós, moradores, fomos enganados em relação à infraestrutura do local. Aqui nem todas as casas tem relógio de eletricidade, nossa água é clandestina, não temos redes de esgoto, nossa rua não é pavimentada, tudo é deficitário. Quando não chove o acesso é menos complicado, mas quando chove é um transtorno, caminhão não sobe e o carro tem sua dificuldade também e alguns não sobem a rua. Fica impraticável. Temos que inventar estratégias de deslocamento, parece que manter essas condições do local é benéfico para alguns candidatos da redondezas aqui, se torna um reduto eleitoral.
Não bastasse as doenças transmitidas pelo mosquito Aedes Aegypti, que na comunidade era grande, tem também a contaminação por dengue e Zika. Esse Covid-19 veio para nos assustar ainda mais, é rezar para que o dia esteja enxuto para que o socorro aconteça. Nós queremos sobreviver a esse holocausto pandêmico produzido por governos egocentristas, birrentos e canalhas.
Quando olho para a redondeza, vejo que a minha comunidade só cresce, sem nenhuma infraestrutura, pois é um lugar que não fica às vistas das pessoas. Para conhecer o lugar tem que subir o morro. Ao mesmo tempo que as condições de acesso inibem algumas visitas, por outro lado, o medo transita, pois, nenhum isolamento é absoluto, as pessoas têm que trabalhar para a sua sobrevivência e da família.
No dia 10/04/2020, o sogro de minha filha faleceu em decorrência do vírus, a residência fica no bairro de Cosmo. Ela estava lá auxiliando a família, fiquei muito agoniada com a situação. A gente sabe como moramos, os contatos, os espaços das nossas residências e as nossas dificuldades enquanto povo de comunidade. Estou respeitando as orientações da OMS e das autoridades sanitárias, mas um saneamento básico precário facilita a proliferação do vírus e a rua sem pavimentação dificulta o socorro. Políticas públicas urbanas são fundamentais para se praticar a mobilidade e pensar instrumentos capazes de transformar padrões da urbanização socialmente injustificáveis, como a precariedade e a segregação socioespacial imposta para os moradores das comunidades. Estas políticas devem ser priorizadas.