Entrevista: Anazir Maria de Oliveira – Dona Zica

Encontros de Mulheres assistidas pelas cesta básica - Imagem: Dona Zica

A senhora poderia começar se apresentando?

Meu nome é Anazir Maria de Oliveira, natural da Cidade de Manhumirim (MG). Sou Graduada em Pedagogia pela Universidade Cidade e em Serviço Social pela PUC-RIO. Sou moradora de Vila Aliança, Bangu, desde 1964

Como foi o contexto de surgimento e construção da Vila Aliança?

Vim para o Rio de Janeiro em 1948, indo morar em São Cristóvão numa co­munidade de favela, Favela do Alegria, onde morei por seis anos. Foi aí que veio meu 1° processo de remoção para o bairro da Penha em 1952. O segundo processo se deu em 1964, da Penha para a Vila Aliança. Foi um processo como todas as remoções: muito ruim! A gente sai de uma co­munidade onde construimos nossa vida por muitos anos, as relações de amizade com toda a estrutura nas quais convivemos ao longo do tem­po. Chegamos em uma comunidade onde tudo é novo, vizinhos novos, moradores novos, tudo diferente da vida anterior. Um novo recomeçar de vida, muito assustador.

A Vila Aliança era um conjunto habitacional?

Sim, Vila Aliança e Vila Ke­nedy foram os primeiros conjuntos habitacionais no governo de Carlos Lacerda, na década de 60. Ao ser informada de uma nova remoção, decidi conhecer o espaço onde seria meu novo local de moradia. Era um local muito bonito, não havia ainda nenhuma construção. Ao ser removida pra Vila Aliança a primeira vista fiquei maravilhada ao entrar na casa, tanto na favela da Alegria em São Cristóvão quanto no Parque Proletário da

Penha, eram barracos de táboa e sem nenhuma infraestrutura bá­sica de moradia. Não havia água encanada, tínhamos que enfren­tar fila para conseguir água para o nosso gasto e a iluminação era de condições precárias. Na nova casa em Vila Aliança me senti realizada. Ao passar do tempo, tanto eu quanto outros mora­dores começamos a perceber a verdadeira realidade, porque nos foi entregue uma casa com construção incompleta, faltan­do cômodos a ser construídos, e a construção seria por nossa conta, paga por 120 meses.

As casas não estavam comple­tamente prontas?

Não, não es­tavam. Tivemos que completar a construção. Sem muro, sem piso e sem embolso. Mas o que mais nos assustou e fez com que nós moradores caíssemos na realidade foi perceber que não tínhamos nenhuma estrutura básica do poder público a não ser água e esgoto. Não tínhamos iluminação pública, escola para nossas crianças, não tínhamos asfalto, nem transporte. Nada nos beneficiava enquanto direi­to a uma moradia digna. Como não havia iluminação pública, cada morador foi dando o seu jeito, colo­cando uma lâmpada em frente à sua casa. Quando chegávamos tarde do trabalho ficava difícil, os moradores já haviam se recolhido e as luzes estavam apagadas.

Projeto de Crianças Fundação Bento Rubião

Imagens: Dona Zica

E como foram as mobilizações para lutar por esses serviços públicos?

Eu não tinha nenhuma experiência de organização social e comunitária. No processo de remoção vieram famílias de várias comunidades da Zona Sul e Zona Norte. Alguns moradores, principalmente as mulhe­res, já atuavam em algumas atividades em suas comunidades, entre elas, atividades religiosas. Nas conversas entre umas e outras, trazen­do suas experiências, foram percebendo outras necessidades básicas, o que resultou na fundação de um Clube de Mães, com o objetivo de con­versarmos sobre as nossas necessidades, unir as mulheres para tro­car experiências e encontrar uma forma de apoio para nossas crianças que ficavam soltas na rua enquanto as mães trabalhavam. A Fundação Leão XIII foi o primeiro serviço público a entrar na comunidade com um posto de atendimento de saúde. Com a atuação do Clube das Mães encontramos uma forma mas concreta para trabalhar com as crianças, essa foi a nossa primeira luta comunitária.

E vocês tinham contato com as organizações da Vila Kennedy?

Vila Ken­nedy por ser uma comunidade com mais tempo de existência, tinham mais organizações sociais e lá já funcionava um Conselho de Mora­dores. Com base na experiência de Vila Kennedy, nós começamos a questionar o poder público, mobilizar a comunidade e chega um mo­mento que a gente tem conhecimento que o Conselho de Morador não tem poder reivindicativo. Aí fomos orientados a criar uma Associação de Moradores e foi daí que começamos a lutar de forma concreta pelas nossas necessidades e a articular com outras associações de moradores de outras áreas. A nossa primeira conquista foi a iluminação pública. E desta forma fomos lutando por conquistas maiores, transportes, entre outras, só não conseguimos de imediato o transporte.

Por que o transporte foi mais difícil? A questão do transporte em Vila Aliança foi e é até hoje um dos nossos maiores problemas. Levamos 15 anos para conquistar uma linha de ônibus nossa dentro do bairro, ba­talhamos muito pelos direitos a transporte e no momento não temos nenhuma linha de ônibus para servir à comunidade. Praticamente foi retirada nossa linha de ônibus conquistada através de tanta luta, que nos conduzia para o Centro da Cidade; a frequência dela foi reduzida a uma vez no dia, saindo da comunidade às 5 horas da manhã e re­tornando a noite. Continuamos na mesma situação de antes, mas hoje temos como serviços de transporte, kombis e motos que servem a co­munidade de Vila Aliança e aos complexos que foram se formando ao longo dos anos.

E como o transporte público foi impactado pela pandemia?

Na crise ini­cial da pandemia, o transporte foi um dos maiores meios de contágio, ônibus e trens lotados, sem condições de distanciamento, muitos pas­sageiros sem o uso da máscara, foi realmente um dos maiores fatores de transmissão de contágio aqui em nossa região.

E ninguém usa mascara?

Ninguém usa máscara. Então isso preocupa muito. E a gente tem tido um grande número de perdas de vidas aqui na comunidade.

Tem ocorrido muitas mortes?

Tem muitas mortes. Na minha rua, do princípio do ano até agora, não tivemos óbitos, mas tivemos 8 pessoas contaminadas numa rua pequena. E assim a comunidade toda. Muitas pessoas têm passado pelo contágio, muitas pessoas vêm perdendo a vida.

A senhora tem informação de como que estão os serviços de saúde na região?

Para atender a comunidade toda nós temos uma clínica da saú­de dentro da comunidade e temos um posto médico de atendimento que é no centro de Bangu. Esse é o nosso serviço: muito, muito precá­rio nosso serviço de saúde. Porque, além de só ter a Clínica da Família, não tem atendimento. A Clínica está funcionando, mas acontece que a gente muitas vezes não tem médico. Entendeu? É um atendimento bem precário, até mesmo pelas condições que a prefeitura oferece. Os fun­cionários também passam por vários problemas exatamente por isso, pela falta de estrutura oferecida pela prefeitura! Então a saúde também é dessa forma. O que acontece? A população está investindo em plano de saúde, mas nem todos podem! A maioria da comunidade não tem condições. Então fica muito precário, muito precário mesmo.

Como está a vacinação?

A clínica está vacinando. A vacina está aconte­cendo, mas há uma resistência muito grande da população.

As pessoas estão resistindo à vacina?

Sim, muitas famílias estão resis­tindo. Tipo assim, “vou esperar o que vai acontecer”, além do que a resistência tem sido motivada pelo incentivo maior do governo federal, porque tem muitos seguidores dele aqui na favela. E essas pessoas são resistentes à vacina e ele incentiva essa resistência. Para ele está tudo bem: “é só uma gripezinha”. Por isso as pessoas vão acreditando nisso e estão se recusando. Tem muita gente se vacinando, eu já me vacinei, mas há também uma resistência muito grande à vacina. Por mais que a gente se reúna e converse sobre os riscos de não se vacinar, ainda tem muita gente resistindo.

Como são os movimentos e as mobilizações sociais na Vila Aliança hoje?

É o que faz movimentar as nossas reivindicações . Nós temos a associa­ção de moradores, temos vários grupos sociais e são esses coletivos que fazem movimentar nossas lutas e conquistas, mas também não é com frequência, ou seja, não é como a movimentação que tínhamos antes. Naquele tempo era diferente. Por exemplo, nós marcávamos uma reu­nião com o secretário de transporte, ele dizia: vem duas pessoas só pra conversar. Mas nós fazíamos uma mobilização na comunidade e levá­vamos um ônibus cheio. Então, quando as duas pessoas estavam sen­do atendida, o pessoal ficava andando pelos corredores, fazendo lobby mesmo. Mas hoje nós temos essa dificuldade. Até porque já não há boa vontade do poder público. Além disso, as ofertas e facilidades do povo também dificultaram muito. Hoje nós não temos uma mobilização tão grande como tínhamos antes. Tem um grupo que está com determi­nado setor, outro com outro e isso divide a comunidade. A gente está lutando para recuperar essa trajetória passada.

A senhora continua na militância?

Continuo na militância. Temos gru­pos de igrejas na comunidade que são grupos sociais que lutam mes­mo. A questão racial a gente debate, a questão das crianças também. Mas nós não temos uma mobilização como tínhamos no passado, junto com o Itamar, com quem tivemos uma luta muito grande e bonita com as crianças e adolescentes. Hoje temos resultados maravilhosos dessas lutas. Tivemos perdas, mas o ganho foi muito grande. Nós temos hoje jovens nossos na saúde, jovens em empresas e temos jovens hoje polí­ticos, nascidos e criados na comunidade. Essa é uma das nossas ques­tões maiores, não temos uma atividade que possa estar ajudando esses jovens de hoje a ter uma expectativa de vida. Porque não há nenhuma atividade dentro da comunidade para jovens e adolescentes.

Não tem políticas voltadas para a juventude…

Não, não tem. A única dis­tração ou questão cultural que tem na comunidade são os bailes. Fora isso não temos mais nada. É um abandono do serviço público dos nos­sos adolescentes. Então o que a gente vê? São as cobranças! E quais são essas cobranças? As cobranças são quando a polícia entra na comu­nidade e esses jovens pagam com a vida. Famílias desrespeitadas. E o questionamento quando morre um jovem é se ele é bandido, mas não questionam o porquê de onde ele chegou. Não se pergunta e não se re­flete sobre isso, sobre por que ele chegou onde chegou. A maioria dos nossos jovens são jovens negros e não há perspectiva para eles.

Não tem horizonte para a juventude?

Sim. Esse é outro fator também da pandemia. Hoje as escolas têm que estar fechadas. O jovem sem poder estar numa sala de aula, onde é que ele está? Na minha mentalidade não é por isso que a gente vai achar que as escolas têm que abrir. A vida é o mais importante. Se critica muito essa questão de isolamento, mas a vida é essencial. Quando falam do crescimento econômico, eu digo que quem constrói a economia é o trabalhador. E são de trabalhadores a maioria de mortes. Então eu acho que tem de ser feito uma análise muito grande dessa situação em relação à população. Eu acho assim: se tivesse permanecido o isolamento social por mais algum tempo nós não estararíamos nessa situação.

E se tivéssemos investido na busca da vacina mais cedo, poderíamos ter diminuído a gravidade da situação e de mortes evitáveis?

Essa questão da vacina é uma questão que devemos sempre estar questionando. Por que não tivemos a vacina mais cedo? Por que houve vacina para uma determinada idade e na semana seguinte não tem vacina? Isso é uma loucura! Isso é um suicídio. Suicídio, não: assassinato! Loucura! E tam­bém a falta de respeito de quem pode até comprar uma vacina, se for possível! Mas tira o direito daquele que está na espera e com dificulda­des muito sérias.

E a questão do desemprego, do trabalho e da renda?

Em todo esse perí­odo de pandemia, foi um período muito difícil mas também de muita solidariedade não por parte dos governos, mas sim por instituições que mobilizaram para que pudesse ser amenizada a situação, da fome e dos sofrimentos de muitas famílias. Trabalhamos na comunidade com um projeto de mulheres que tem como título “Mulheres Nós na Luta” no qual sou responsável pela coordenação. Nosso projeto foi contemplado por uma instituição para a distribuição de cestas básicas. Isso no prin­cípio da pandemia nos deu condições de atender 55 famílias, com as quais continuamos fazendo atendimento. Para cadastrar essas famí­lias, mesmo no momento crítico da pandemia, fomos em campo, pes­quisamos as condições de cada família e percebemos que o problema maior foi o desemprego: trabalhador desempregados vendendo bala no centro de Bangu, mulheres sendo a maioria empregada doméstica sem nenhuma renda vivendo de favores ou de ajuda de parentes. Aumentou também na comunidade o número de catadores de recicláveis. Esse foi o quadro que encontramos. Estamos assistindo essas famílias com cesta básica desde janeiro de 2021. Além das necessidades de cesta básica de alimentos, percebemos a necessidade de atenção, apoio e autoestima. Formamos um grupo com essas famílias; nos encontramos uma vez no mês. Nesses encontros, nós promovemos palestras aonde a gente con­versa temas relacionados aos problemas da comunidade. Estamos pro­gramando dar continuidade a esse trabalho em 2022. Principalmente no atendimento reivindicado por elas, como oficina de produção e ren­da, entre outros.

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