A ideia da Periferia Brasileira de Letras (PBL) nasceu a partir de investigações que o Ecomuseu de Manguinhos/Redeccap fez sobre literatura e formação cidadã em parceria com a Cooperação Social da Fiocruz. Podemos dizer que a existência de novos autores vindos das periferias interfere na esfera pública? E quando aumentam os leitores nessas mesmas periferias, é possível dizer que serão melhores as condições para o exercício da cidadania? A resposta para as duas perguntas é sim. Mas não é tão simples. Mais autores e mais leitores periféricos não resolvem os problemas relacionados à saneamento básico ou de segurança pública, para ficar com dois exemplos. Porém – e isso é possível afirmar – trata-se de um direito acessar e criar literatura. Um direito humano, como diria o sociólogo Antônio Cândido.
A escrita na história da humanidade determina lugares de poder, de quem tem suas narrativas contadas, impressas e distribuídas. A literatura nos territórios populares muitas das vezes não encontra modos de se materializar devido à falta de acesso aos livros, ao hábito da leitura e ao incentivo à criação literária. Afinal, quem tem direito ao ócio para a escrita criativa numa sociedade de capitalismo periférico? Dado que é necessário existir políticas públicas para suprir essas demandas sobre o universo da leitura nos territórios periféricos, e que tais políticas públicas ganham força reivindicatória a partir da participação popular, a Cooperação Social da Fiocruz – que trabalha com modos de aumentar democracia em favelas – se fez parceira do Ecomuseu de Manguinhos, e desenhou um projeto que pudesse lidar, simultaneamente, com oito regiões metropolitanas do Brasil. É quando a PBL se materializa como um projeto da Cooperação Social da Fiocruz.
Como o livro, a leitura e a literatura encontraram meios de mobilizar pessoas nos territórios de favelas e periferias? Isso tem acontecido em muitas e muitas favelas brasileiras. Aí moram as pistas sobre novos modos de participação popular no espaço público. Além da compreensão de que a escrita, especificamente a escrita periférica, ao existir ajuda a ocupar o imaginário das pessoas com histórias normalmente invisibilizadas, é importante entender também a força de organização popular que a literatura tem promovido.
Com a PBL se identificou que os coletivos e grupos literários nas favelas são um tipo de sujeito político arejado e instigante. Olhem para as rodas de slam, para os saraus, para os clubes de leitura. Fortalecê-los, ajudando na formação de uma rede entre eles, significa aumentar suas capacidades para interlocução com o poder público:
esse é o coração do projeto Periferia Brasileira de Letras. Em suma, a PBL propõe a criação de uma rede de coletivos literários em 8 capitais brasileiras (Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Brasília, Fortaleza, Salvador e Recife) para reivindicação de políticas públicas no campo da leitura, livro e literatura adequadas às demandas por direitos dos seus territórios.
Imagem: Acervo PBL
Para isto, os coletivos literários participarão durante quatro meses de encontros virtuais divididos em três etapas: 1) Curso para a rede PBL ampliar sua participação na construção de políticas públicas sobre o livro, leitura e literatura para territórios periféricos; 2) Produção de um documentário que registre a experiência dos coletivos e que registre a diversidade literária produzida em diversas regiões do Brasil; 3) Criação de um Fórum e a construção de uma agenda coletiva de articulação política e cultural da rede Periferia Brasileira de Letras para 2023. O projeto tem também o objetivo de colaborar para o aprofundamento de um campo que seja agregador das diversas literaturas existentes no Brasil, dando visibilidade aos coletivos e grupos participantes dessa rede e, mais ainda, à diversidade da produção da criação literária de favela e periferia. Com exposições, residências literárias, rodas de leitura, publicação de livros e festivais culturais, a Cooperação Social da Fiocruz e o Ecomuseu de Manguinhos demonstraram, ao longo da última década, que as classes populares não apenas fazem boa literatura, como querem mais, querem para si o direito de contar sua história a partir da sua própria perspectiva, sendo desta vez autores e não apenas personagens – estes, muitas vezes estereotipados pela visão do outro. Acreditamos que este movimento, que se instaura sob o nome Periferia Brasileira de Letras, pode contribuir para o debate público sobre a importância da democratização do livro, da leitura e literatura brasileira. A leitura é indispensável para se estar no mundo. Não apenas a leitura das palavras impressas no papel, mas ainda as narrativas que nos atravessam cotidianamente em jornais, redes sociais, novelas, filmes, entre outros meios. Saber ler é imprescindível para o exercício da nossa cidadania.