Entre a tragédia e a farsa, temos a repetição de algum acontecimento como um ponto comum. Depois da tragédia, acontece a farsa e sem que a gente perceba, surge a tática. Esta sim, é a ação repetida algumas vezes, de maneira parecida, nos conduzindo para eventual normalidade. Até que somos surpreendidos por algo que choca nossa emoção e faz com que o assunto seja debatido de diversos ângulos. O caso Genivaldo, homem morto por asfixia, dentro de uma viatura policial, não foi uma tragédia e não foi uma farsa. O assassinato daquele homem, a luz do dia, na presença de outras pessoas, é uma tática sórdida de um Estado que captura cidadãos e decide se o mesmo merece viver ou não.
A violência que Genivaldo sofreu, dentro de uma viatura policial, que resultou em morte, não foi uso excessivo da força e merece atenção pela forma reiterada que ela se aplica em territórios de favelas. Os carros oficiais a serviço da polícia, apelidados de “Veraneio Vascaína”, “camburões” e “caveirões”, sempre fazem incursões em favelas com a funcionalidade de um tribunal móvel de inquisição: capturam, torturam, interrogam, e em muitos casos, matam o cidadão morador de favela. Moradores de favelas correm de viaturas, não por eventual dívida: “correu por estar devendo”, as pessoas correm, pois, sabem que vão sofrer tortura, abordagem violenta e outros tipos de violência.
Genivaldo foi assassinado numa rodovia, a luz de muitas pessoas, possibilitando inclusive a filmagem. Infelizmente, não é a realidade nos becos, vielas e ruas das favelas e dos morros, onde “o filho chora e a mãe não vê” e a Justiça se faz de cega. Dentro das favelas, cidadãos são torturados dentro das viaturas, dos caveirões e são obrigados a falar o que sabem e o que não sabem para fugir das agressões que podem resultar em morte. Viatura é um automóvel, que a polícia faz uso para torturar e matar pessoas dentro de favelas, e tudo isso sob a justificativa de combater o crime, mesmo que seja por meio da criminalidade escondida dentro do carro policial, durante uma simples e rotineira ronda ou o chamado patrulhamento ostensivo.
Quando jovem, através da televisão, acompanhei o emblemático sequestro do “ônibus 174”. O ocorrido foi transformado em filme, e sem perceber estávamos diante de uma tragédia em que a arte imitou a vida. Um jovem sequestrou um ônibus, desafiou as autoridades policiais, aterrorizou os passageiros sequestrados, revelou o despreparo da polícia e morreu asfixiado dentro de uma viatura policial, como aconteceu recentemente. No fim o ocorrido foi interpretado como uma tragédia, como um excesso, ação por impulso ou forte comoção. O assassinato do Sandro, que foi asfixiado durante o trajeto até a sede policial, foi visto como um fim trágico, e não como um crime dissimulado.
Um jovem negro, exposto pelos telejornais como sequestrador, como um ser humano monstruoso, sádico e incontrolável; logo foi categorizado como bandido, e, consequentemente, alvo perfeito de uma tática sórdida, feita para decretar a aniquilação de sujeitos indesejáveis. Sandro foi executado, dentro de uma propriedade do estado, sob escolta de agentes públicos. Sandro morreu, mas sua condição de subcidadão fez com que seu assassinato fosse visto como uma tragédia ou algo que se justificasse em seu fim. E não era. Tortura que tem a morte como resultado, não é excesso ou tragédia, é uma tática, prática recorrente e algo que antecede o caso Genivaldo ou o caso Sandro. É uma prática de Estado.
Depois de muito tempo, a cena de um corpo negro arrastado por uma viatura policial circulou o Brasil e o mundo. Cláudia foi arrastada pelo camburão da polícia e, ferida, morreu enquanto era cuidada por quem deveria lhe oferecer proteção. Um corpo negro arrastado numa via pública. Poderia ser um bandido arrastado, então, mais uma vez, não como tragédia e, sim com certa desfarsatez. Um corpo foi desprezado enquanto padecia durante a tutela do poder público. Cláudia foi assassinada, e não cabe desdobramentos.
Quando á bendita viatura não produz morte, provocada por servidores públicos que a conduzem ela provoca traumas, deixa sequelas e faz adoecer quase todos àqueles que por eventual circunstância são transportados dentro dela. O camburão, faz com que o termo por si só, provoque uma agonia claustrofóbica. Andar de camburão é ter a infeliz certeza de que a parte possível no transporte é a caçapa.
Já vi carro policial, modelo compacto, servir como transporte de pessoas presas. Lembro quando a Polícia Militar do Rio de Janeiro tinha viaturas no modelo “Gol Bolinha”, que eram carros sem mala, e que paradoxalmente possuía um pequeno espaço na traseira do veículo denominado como mala. O compartimento servia como alojamento de preso. Ser lançado na mala do Gol Bolinha era um rito de terror, de tortura e de sofrimento. Geralmente quem anda na mala do carro é categorizado como bandido, e tal tratamento é pouco questionado. Culpado ou inocente, ser transportado na mala da viatura produz sensações insuportáveis, escrevo por experiência própria. Já fui transportado por viaturas policiais, muitas vezes, e sei a agonia que é. Já desmaei, já vomitei, transpirava gelo, perdia o ar, fi cava tonto e outras coisas mais. Estava na condição de homem preso, então todo castigo pra bandido é pouco. O “bandido” é o Genivaldo, e a Cláudia, pessoas trabalhadoras vítimas de táticas interpretadas como tragédias.
Os carros que transportam presos em todo país são iguais, não no modelo, e sim na estrutura e formato. Um caixote de ferro, que trafega sob o sol forte, por horas nas rodovias, avenidas e estradas das cidades e interiores. Aquele sol, incendeia aquela estrutura de ferro, duplicando o calor e fazendo da viatura um forno microondas. Em outros momentos, é um grande freezer, um congelador. É tortura submeter o preso a tais condições de deslocamento, por horas do dia. Durante a logística, a queima do diesel ou da gasolina, produz um cheiro de combustão que é inalado por todos os passageiros que estão na caçapa daquele carro. O transporte faz adoecer, tira a dignidade, afeta o raciocínio da pessoa, traumatiza os sobreviventes e desnorteia o caminhar de quem fica bastante tempo trancafiado.
Uma investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro revelou um esquema de tortura e de sequestro praticados por policiais militares5. Fotos foram divulgadas e as imagens continham policiais fardados, dentro da viatura, acompanhados de uma pessoa presa, algemada, com o saco preto na cabeça. A asfixia que matou o Sandro, o Genivaldo, e outros mais não identificados, pode ser feita por uma bomba, um saco plástico ou até mesmo com a força do braço, de forma mecânica.
O transporte que arrastou Cláudia, que ocultou o corpo do Amarildo, e que levou jovens para serem executados na mata do Sumaré, ainda está em circulação. São viaturas policiais, a serviço do estado. Viaturas que transportam milhares de presos, capturam indiciados e fazem a logística da população carcerária em movimentações judiciárias ou administrativas. Enquanto escrevo lembro o sarcasmo de alguns ouvintes: “trabalhador anda amassado no transporte público”, “viatura não é uber” e “é só não fazer merda que não passa por isso”, “cometeu crime agora banca!”. Se foi tragédia, eu não me lembro. Se foi farsa, eu não percebi. Escrevi tudo isso para expor um trauma do meu tempo de presidiário. Aquele ambiente de viatura policial faz a gente adoecer e ficar traumatizado, e não posso dizer que ainda bem que não morri com uma bomba de gás. Ano passado eu não morri, mas este ano posso morrer, afinal a carona da morte e da tortura está na pista, de caçamba aberta, sempre disposta a conduzir mais alguém, pois nunca foi tragédia ou farsa, sempre foi tática, foi crime, sempre foi desejo deliberado de matar.