Por que podemos dizer que agro é fome?

Yamila Goldfarb, é doutora em Geografi a pela USP, pós-doutoranda do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Ubesp e vice-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra)
Avião pulverizando agrotóxico em monocultura (Crédito: Thomas Bauer – CPT)

Por que tantas pessoas insistem em afirmar que o agro gera fome? Para começar a responder a essa pergunta devemos, antes de mais nada, entender quem é o agro. Se nos guiarmos pela campanha midiática, o agro é tudo. Tudo e todos. É a agricultura moderna de exportação, a agricultura familiar que coloca comida no prato de todos, a pecuária preocupada com a redução das emissões de carbono, a indústria de alimentos e por aí vai. Na campanha veiculada em horário nobre, não aparece o grileiro de terras, o grande latifundiário que não produz nada, ou quase nada, o fazendeiro que queima a floresta para expandir a sua área de produção, ou simplesmente para especular com a terra.

A campanha publicitária também não fala das diferenças de tratamento aos diferentes segmentos do campo. Não fala que apenas os grandes proprietários é que recebem a maior parte de recursos públicos em créditos, incentivos, isenções tributárias e perdões de dívidas, enquanto os pequenos e médios produtores estão cada vez com menos crédito e sem políticas públicas que viabilizem a sua produção e o escoamento. Logo, não podemos acreditar que o agro é tudo.

Mas, por que ele se coloca como sendo “tudo”? Porque o agro precisa se legitimar constantemente frente à barbárie que leva ao campo. Do ponto de vista ambiental, é o principal responsável pela devastação florestal e envenenamento dos solos, das águas, de homens, mulheres e crianças. O agro é responsável pela violência crescente no campo. Toda semana lideranças indígenas, camponeses, quilombolas e ambientalistas são assassinadas. A população é aterrorizada com a queima de casas, destruição de roçados e expulsão e invasão de suas terras e territórios. O trabalho escravo persiste mesmo nas fazendas mais modernas.

Hoje, a estratégia dessa grande campanha de marketing é dizer que o agro é a riqueza do Brasil. Uma riqueza que alimenta o mundo gerando emprego e que ainda o faz de forma sustentável. Será? A agropecuária, no Brasil, representa algo em torno a 8% do PIB brasileiro apenas. Muito diferente dos 26, 27 ou 28% que o Agro costuma afirmar. Por que isso? Porque esse valor não se refere apenas à produção chamada porteira adentro, mas a toda a cadeia produtiva, o que significa envolver parte do setor industrial e de serviços. Ora, se cada segmento da economia quiser justificar sua importância analisando cadeias produtivas inteiras, teríamos dupla contagem da contribuição de um determinado produto inúmeras vezes. É claro que análises setoriais são importantes para se pensar o planejamento econômico e as políticas públicas para o país. O problema aqui é o uso que se faz disso. O que o Agro busca ao usar o chamado PIB do agro, calculado pelo Cepea (USP), é forçar uma importância econômica que não possui. É passar a ideia de que é imprescindível ao país, quando, na realidade, não é. Ou, melhor dizendo, é imprescindível porque se faz ser. Porque faz com que a única forma de o país conseguir divisas seja exportando commodities de baixo ou quase nada valor agregado, enquanto o país se desindustrializa.

Ainda no mesmo sentido, chama a atenção a baixa arrecadação das atividades de agricultura, pecuária e serviços relacionados, que arrecadaram, em 2019, apenas algo em torno de 6 bilhões de reais, segundo o site da Receita Federal. A título de comparação, atividades como o comércio varejista arrecadou quase 113 bilhões, em 2019, o setor de educação, 60 bilhões, a fabricação de equipamentos de informática, produtos eletrônicos e ópticos, 18,5 bilhões, a fabricação de produtos de metal, exceto máquinas e equipamentos, quase 16 bilhões. Um dado que explica a baixa arrecadação do setor agropecuário é a isenção que recai sobre as exportações proveniente da Lei Kandir, criada na década de 1990, quando o Brasil aprofundava sua entrada no neoliberalismo com a abertura de seus mercados. Essa lei, ao isentar de impostos os produtos primários ou semielaborados destinados à exportação, acaba por estimular sua produção. A questão é que isso ocorre em detrimento do estímulo à produção de alimentos. Agora, por que isso diz respeito à população brasileira? De que forma isso a impacta e, particularmente, a população que se encontra em situação de maior vulnerabilidade? Vejamos:

Primeiramente, esse modelo estimulado pelos sucessivos governos não é gerador de empregos. Ao levarmos em conta o total de trabalhadores do campo registrados pelo Censo Agropecuário do IBGE 2017, o qual agrega os formais e não-formais, o total é de 15.105.125 trabalhadores e trabalhadoras. Mas esse total está́ longe de ser de trabalhadores da grande propriedade fundiária, pois, segundo classificação do IBGE, desse total, 10.115.559 são da agricultura familiar e 4.898.566 da agricultura não-familiar, isto é, é o campesinato que gera a grande parte dos postos de trabalho no campo, posicionando a agropecuária patronal em segundo plano (MITIDIERO Jr; GOLDFARB, 2021). Não é demais lembrar que é em cadeias produtivas de commodities agrícolas e pecuárias (criação de bovinos para corte, cultivo de arroz e produção da cana-de-açúcar, 32%, 20% e 11% dos trabalhadores resgatados, respectivamente entre 2003 e 2018) onde se encontram os maiores números de trabalhadores em situação análoga à escravidão, conforme o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas.

Além de não gerar empregos, tampouco gera desenvolvimento regional: Em pesquisa intitulada de o “Agro Pode Mais”, desenvolvida pela Universidade Federal de Minas Gerais com apoio da União Europeia, concluíram que Municípios do agro têm nível de desenvolvimento humano menor no Brasil. “De acordo com a pesquisa, mesmo em regiões com produção agrícola pujante, como Centro-Oeste, Sul e Sudeste, não há elevação no nível de desenvolvimento dos municípios quando comparados com aqueles que têm outra atividade econômica principal” (GOLDFARB; MITIDIERO Jr., 2021, p.33).

Essa visão, portanto, de que uma agricultura moderna gera desenvolvimento deve ser relativizada. Em reportagem do site “O joio e o Trigo”, também é possível ver como as cidades que crescem em torno da economia do agronegócio são marcadas por racismo, preconceitos e forte segregação[1].

Em segundo lugar, e como já foi brevemente citado, esse modelo acaba por privilegiar o equilíbrio da balança comercial[2] (geração de superávit a qualquer custo) em detrimento de um projeto de soberania alimentar para o país. O desmonte das políticas públicas de apoio à agricultura familiar e de abastecimento vão, por um lado, fazendo com que áreas destinadas à produção de alimentos sejam gradativamente substituídas por monoculturas de exportação, e por outro, com que o preço dos alimentos suba, enquanto a variedade e a qualidade diminui. Isso impacta diretamente as populações do campo e da cidade. *O Brasil tem mais de metade de sua população com algum grau de insegurança alimentar. Ou seja, vivem naquela situação em que não possuem garantia de que farão as três refeições diárias. Delas, 33 milhões de pessoas estão passando fome diariamente (insegurança alimentar grave). Ao mesmo tempo, o sobrepeso e a obesidade aumentam. Segundo a Abeso, o Brasil possui 55,4% da sua população com excesso de peso, sendo quase 20% obesos. 12,9% das crianças brasileiras entre 5 e 9 anos de idade têm obesidade, assim como 7% dos adolescentes na faixa etária de 12 a 17 anos. Dados preocupantes que se explicam por diversos fatores, dentre eles, a dificuldade de acesso aos alimentos saudáveis. Isso porque diante do aumento do preço dos alimentos, por um lado, e a queda na renda das famílias, por outro, as pessoas se veem obrigadas a escolher alimentos mais baratos e de maior valor energético. É a perversidade do nosso sistema agroalimentar. A inflação dos preços alimentares possui rebatimentos diferenciados na sociedade brasileira. O impacto dessa inflação no orçamento dos ricos e da classe média é bem menor que no orçamento dos pobres. Segundo o IPEA, a inflação teve impacto de 6,22% para os pobres, mais do que o dobro do impacto para os ricos, com 2,74%. No aspecto de comprometimento da renda, as famílias pobres comprometeram 37% dos seus orçamentos com gastos alimentares, energia e gás de cozinha, enquanto os ricos comprometeram apenas 15% (GOLDFARB; MITIDIERO Jr., 2021).

Por isso, o desmonte de políticas de abastecimento e de controle dos preços dos alimentos é algo tão preocupante. Vejamos como tem se dado esse desmonte: Em primeiro lugar, temos o sucateamento ou desestruturação dos Equipamentos Públicos de Segurança Alimentar e Nutricional, que são estruturas físicas e espaços destinados, no todo ou em parte, à provisão de serviços públicos ao cidadão com vistas à garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) e da SAN, destinados à oferta, distribuição e comercialização de refeições ou de alimentos. Os Epsan são classificados em: a) equipamentos de acesso à alimentação saudável e adequada e b) apoios ao abastecimento, distribuição e comercialização de alimentos. Essas são as duas frentes que este artigo pretende analisar, de forma a destacar as ações, programas e modelos que devem ser potencializados com vistas à redução da fome e garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada.

Os Epsan de acesso à alimentação saudável e adequada se caracterizam por espaços públicos que produzem e ofertam refeições, constituindo- se como um serviço de alimentação. Dentre estes, são exemplos as estruturas que produzem e disponibilizam refeições aos cidadãos, no âmbito das redes públicas de assistência social, saúde, educação, justiça e segurança pública, com destaque para as cozinhas comunitárias, os restaurantes populares, restaurantes universitários, os serviços de produção de refeições das escolas, das creches, dos hospitais e das unidades prisionais.

Os Epsan de apoio ao abastecimento, à distribuição e à comercialização de alimentos se caracterizam por serem espaços e serviços públicosde integração entre a produção e o consumo, constituindo-se comopotenciais açõ es para a estruturação de circuitos locais de produção,abastecimento e consumo. Dentre eles estão as centrais de recebimentoe de distribuição de produtos da agricultura familiar (Centrais) e unidadesde beneficiamento da agricultura familiar (UADAF); o banco deAlimentos; as centrais de abastecimento (Ceasa); as feiras; e os mercadospúblicos (CAMPOS, GOLDFARB 2021)

A pandemia evidenciou a importância desses espaços e a falta que eles fazem em situações críticas como as que estamos vivendo. Um exemplo foi o aumento da fome nos lares onde crianças deixaram de receber as refeições escolares. Outro exemplo é a dependência que pessoas em situação de privação de liberdade possuem dos alimentos fornecidos por familiares, os conhecidos “jumbos”.

Por sua vez, o aumento da importância das grandes redes de supermercados ao longo das últimas décadas, com seus enormes Sistemas de Distribuição fez aumentar o seu poder de controle sobre os preços e sobre o leque de produtos ofertados. Grandes redes de supermercados, utilizando-se do sistema de Centrais de Compra e Centrais de Distribuição (CC-CD), têm eliminado os atacadistas e passado a funcionar como atacado para restaurantes, varejistas, cozinhas industriais etc., e, por isso, são chamados de Atacarejo. O desmonte e o sucateamento dos equipamentos como feiras, mercados públicos e Ceasas deixa o abastecimento de produtos frescos nas mãos justamente dessas grandes distribuidoras, que são extremamente desvantajosas para os pequenos produtores. Dessas grandes Centrais de Distribuição partem caminhões menores com a carga arrumada e organizada para ser distribuída nas lojas. Esse sistema, que para as grandes redes permitiu reduzir custos de distribuição e estocagem, para os produtores impõe a necessidade de maior produtividade, regularidade e pontualidade na entrega, o que exclui uma enorme parcela de produtores que não conseguem atender esses requisitos, particularmente, produtores de frutas, verduras e legumes. A participação das famílias agricultoras e de suas organizações nos mercados está muito aquém de seu potencial, daí a importância de que alimentos frescos não dependam das grandes redes para serem distribuídos (CAMPOS, GOLDFARB 2021).

O que está ocorrendo é que o escoamento e a distribuição dos alimentos saudáveis está nas mãos do mercado e este, por sua vez, não é regido pela necessidade de se garantir a segurança alimentar, mas pela maximização dos lucros. Nesse sentido, produtos processados, padronizados, de alta durabilidade e apelo pela alta palatabilidade são muito mais interessantes. Daí que um pacote de macarrão instantâneo se torna mais acessível que um bife e uma salada, ou que um refrigerante se torna mais acessível que um suco de frutas. Para poder matar a fome, a população come o que a mata ao longo do tempo…

Outro fator fundamental que tem sido deixado nas mãos do mercado é o controle dos preços em si. Isso ocorre pelo desmonte das políticas de estoques reguladores, processo iniciado já́ no início da onda neoliberal da década de 1990 e recentemente aprofundado. Esse processo aumenta a volatilidade dos preços de itens básicos como o arroz, o feijão e o trigo, deixando a população numa situação de maior vulnerabilidade.

Em 1991, existiam 349 armazéns públicos geridos pela Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB). Segundo o site da CONAB, a capacidade estática total da empresa é de pouco mais de 1,6 milhões de toneladas, o que representa cerca de 1% do total do país. Essa capacidade está distribuída em 64 unidades armazenadoras com 126 armazéns. A título de exemplo comparativo, a grande indústria, principalmente de óleos vegetais, massas e biscoitos, possui capacidade de armazenagem de mais de 25 milhões de toneladas em armazéns, graneleiros e silos. Imaginemos a capacidade das grandes traders, comercializadoras mundiais de grãos como Cargill, Bunge, Louis Dreyfus. Um dos problemas é que os estoques públicos possuem a importante tarefa de serem o lastro da Política de Garantia de Preços Mínimos, que desde 1966 protege os produtores rurais.

A Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) é uma importante ferramenta para diminuir oscilações na renda dos produtores rurais e assegurar uma remuneração mínima, atuando como balizadora da oferta de alimentos, incentivando ou desestimulando a produção e garantindo a regularidade do abastecimento nacional. A Conab efetiva a PGPM junto ao produtor rural, tendo sob sua responsabilidade a execução dos instrumentos desta Política (Conab).

Esses estoques possuem ainda a tarefa de controlar a subida dos preços ao consumidor, uma vez que o Estado pode disponibilizar a produção armazenada em momentos de alta do preço, contendo sua subida. Quando o Estado deixa de possuir estoques públicos, o controle dos preços fica inteiramente nas mãos do mercado, não apenas nacional, mas também internacional. Não raras vezes, dependemos de importação de grãos como arroz ou milho para baixar os preços internos. Grãos que não apenas produzimos no país, mas exportamos. Daí a incongruência desse modelo. Em suma, o que vemos é um sistema agroalimentar que ao mesmo tempo que favorece o agronegócio[3] e a exportação de uma pequena parcela de produtos primários, desmonta as capacidades e estruturas estatais responsáveis pela garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada do país, em particular, da população pobre e periférica. Mas isso não ocorre sem resistência. A população se organiza no campo e na cidade. Produz alimento saudável por meio da agroecologia, organiza doação de alimentos, espalha cozinhas solidárias pelo país. A população defende seus territórios produtores de alimento e de um meio ambiente saudável para todos. E o faz muitas vezes com a própria vida.

O que precisamos diante disso tudo, é que essas experiências de resistência se tornem políticas públicas e recebam o apoio que merecem e que o país deixe de se inserir de forma subalterna na economia mundial, retomando o incentivo aos demais setores da economia e regendo seu planejamento político e econômico pelos princípios da soberania (alimentar, territorial e energética) e de Justiça Social.

Referências Bibliográficas

CONAB. Portal dos Preços Mínimos. Disponível em: https://www. conab.gov.br/precos-minimos. Acesso em: jan,fev/2021

CAMPOS, A. L.; GOLDFARB, Y.. Desafios para o abastecimento e soberania alimentar no Brasil. ABRA; FES, 2021. Disponível em https://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/18104-20210928.pdf

PORTO, I.S. Acesso a mercados, desafios e oportunidades. In Revista Agriculturas. V5 No. 2 2008. Disponível em http://aspta.org.br/ files/2011/05/Agriculturas_v5n2.pdf

GOLDFAR, Y. MITIDIERO Jr. A. M. O Agro não é pop, não é tech e muito menos tudo. ABRA; FES, 2021. Disponível em https://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/18319-20211027.
pdf

[1] “Apartheid e racismo nas cidades da soja”, por João Peres e Tatiana Merlino.

[2] Embora não entremos em detalhes neste artigo, vale destacar que a balança comercial é apenas um indicador da economia do país. O que de fato importa é a análise conjunta
de balança de pagamentos, isto é, a conta de todo o dinheiro que entra e sai do país. Levando isso em consideração, temos que o Brasil apresenta enorme déficit na sua conta
corrente. Para mais sobre o assunto, ver Goldfarb e Mitidero Jr, 2021.

[3] Não é muito dizer que este artigo não se propôs a falar sobre a degradação ambiental e os conflitos fundiários gerados por esse sistema, o que não são, em absoluto, desprezíveis.

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