A experiência dos quintais produtivos no morro do sossego

Luciene Silva, é integrante da Rede de Mães e Familiares de Vítimas de Violência da Baixada Fluminense (RJ) e do Radar Saúde Favela – Fiocruz.
“O desenvolvimento dos quintais produtivos no Morro do Sossego tem o intuito de promover o conhecimento sobre a importância da agroecologia no combate à insegurança alimentar”. (Foto: Divulgação/Projeto quintais produtivos)

O Morro do Sossego está localizado no bairro Pantanal, no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, que, atualmente, abriga quase um milhão de habitantes em seus 465 km². Seus limites estendem- se aos municípios de Miguel Pereira, Petrópolis, Magé, Rio de Janeiro, São João de Meriti e Nova Iguaçu. O município é dividido em quatro distritos: Duque de Caxias, Campos Elíseos, Imbariê e Xerém.

Foi ali, no Morro do Sossego, durante a pandemia, que surgiu uma nova opção de sobrevivência para os moradores locais. Seu nome é agroecologia. É apenas a junção das palavras agricultura e ecologia? Claro que não, apesar de que muitas pessoas, logo que visualizam a palavra, fazem a ligação de uma com a outra, sem ter o conhecimento do que realmente significa a agroecologia. Mas, então, vamos descobrir o que é?

Em síntese, é uma forma de agricultura que incorpora questões sociais, políticas, culturais, energéticas, ambientais e éticas, oferecendo alimentos saudáveis para consumo, contribuindo, assim, para a qualidade de vida das pessoas, cultivando a terra com base em manejos naturais e se contrapondo ao uso de sementes geneticamente modificadas, fertilizantes e agrotóxicos. Tudo isso em oposição à chamada “Revolução Verde” (1960), que, tendo como promessa o aumento da produtividade e da venda a preços baixos, desconsiderou os prejuízos e impactos que essa lógica traria para a saúde da população.

Esse método é o de uma agricultura sustentável, no qual a maneira de plantar e cultivar se enquadra no conceito de agroecologia, deduzindo assim que a prática orgânica e o emprego de tecnologias limpas geram menos manifestações ambientais negativas para a sociedade como, por exemplo, o esgotamento do solo, as alterações do ecossistema, o aumento do número de casos de câncer, a poluição dos rios, o desemprego no campo e o inchaço populacional nas grandes cidades.

Geralmente, a prática da agricultura é pensada no contexto rural, no campo e para o campo, mas, hoje, quando vivenciamos o impacto que o período da pandemia da Covid-19 causou na área urbana, em que várias famílias ficaram desprovidas do seu meio de sustento, onde a fome se manifestou de maneira assustadora em vários territórios do Rio de Janeiro, a prática do plantio, cultivo e colheita ganhou uma outra conotação.

Em meio à pandemia houve um agravamento da crise social em todo o país, que trouxe desemprego, falências de empresas, trabalhadores sem poder exercer suas funções, populações abandonadas, as quais não tiveram nenhum amparo concreto e satisfatório do Poder Público. Enquanto não se disponibilizou o auxílio emergencial, que passou por um longo processo burocrático até ser liberado, as famílias começaram a procurar os Centros de Referência da Assistência Social (Cras) de suas regiões para pedir socorro.

Foi ali que um grupo, formado majoritariamente por mulheres (muitas delas mães solo, provedoras de suas famílias), alguns homens e até crianças resolveram unir forças para promover esperança, acolhimento, renovação e transformação através da agricultura com base na agroecologia, metodologia que elas conheceram durante as oficinas de um projeto que as ensinou o caminho de como poderiam, em espaços pequenos ou em espaços que estivessem disponíveis, construir pequenas hortas e quintais produtivos.

Ao se aproveitarem de quintais que estavam repletos de entulho e de mato, esse mutirão de mulheres e homens os transformaram em fonte de alimento saudável coletivo. Quem vive lá e convive, desde que nasceu, com todas as dificuldades que esse território traz, e que agora faz parte desse movimento de ressignificar a vida dentro do território, é que tem propriedade para falar sobre isso.

Marilza Barbosa Floriano é uma mulher preta, chefe de família. Foi empregada doméstica durante mais de 20 anos. É assistente social de formação e integrante da Rede de Mães e Familiares de Vítimas de Violência da Baixada Fluminense. Foi ela quem coordenou o projeto executado pela Rede “Enfrentamento ao Racismo na Base”, no Morro do Sossego, no qual surgiu a iniciativa dos quintais produtivos, levada adiante por Marilza e pelas moradoras mesmo depois do término do projeto. Como nos conta Marilza: “o desenvolvimento dos quintais produtivos no Morro do Sossego tem o intuito de promover o conhecimento sobre a importância da agroecologia no combate à insegurança alimentar. Esse trabalho está promovendo a interação entre os moradores que estão compartilhando saberes populares, doações, trocas de mudas e sementes. Alguns deles relatam que o contato com as plantas contribui para diminuir quadros de ansiedade e depressão. Vários moradores estão fazendo hortas em pequenos espaços das suas casas”.

Através dos ensinamentos passados nas oficinas, nas caminhadas pelo morro, foi se descobrindo que nesse território há muita riqueza que não era conhecida. A partir do contato com as áreas verdes que já existiam no local, as oficineiras foram mostrando para as pessoas alimentos que já estavam ali plantados, prontos para serem consumidos, por exemplo, as Plantas Comestíveis Não Convencionais (PANCs), que nascem naturalmente e que são plantas não convencionais alimentícias, como a bertalha, a beldroega e a ora-pro-nóbis, tudo sem agrotóxico. Além disso, aprenderam também sobre sustentabilidade e como contribuir para a preservação do meio ambiente em um território que não tem investimento em políticas públicas.

Trata-se de uma população unida, aberta ao aprendizado, e que de modo coletivo vai se fortalecendo, desenvolvendo outros quintais, além de uma horta agroecológica sustentável. Toda essa produção é para o consumo da comunidade; os quintais produtivos beneficiam as famílias que ali residem, dividindo com vizinhos suas produções. Hoje, já se colhe cenoura, tomate, batata doce, quiabo, alface, couve etc. Os produtos são divididos de maneira solidária, aqueles que precisam pegam e pronto. As sementes são trazidas de volta para o plantio e também se trocam mudas. Com o conhecimento sobre as plantas comestíveis que já existiam ali e a descoberta de opções para cultivar e colher alimentos saudáveis, que estivessem ao alcance de todos, nasceu essa nova maneira de driblar as dificuldades impostas pela crise que se estabeleceu na pandemia, que refletiu com maior gravidade nas regiões de comunidades e periferias.

É nessa típica paisagem da periferia do Rio de Janeiro, na periferia da periferia da periferia, frente ao tempo tenebroso em que vivemos, que essa iniciativa fértil e saborosa está em curso. Uma atividade concreta para atender demandas concretas.

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