Bibliotecas comunitárias, mulheres e participação social

Isadora Escalante, Rede Baixada Literária
A Parada do Livro Imagem: Acervo Particular Rede Baixada Literária

“Memória… Através dela daremos livros, livros a-mãos-cheias, a
todo o povo. O livro, bem sabemos, é o tijolo com que se constrói o
espírito. Fazê-lo acessível é multiplicar tanto os herdeiros quanto os
enriquecedores do patrimônio literário, científico e humanístico, que
é, talvez, o bem maior da cultura humana”

(Darcy Ribeiro).

Brasil. Rio de Janeiro. Baixada Fluminense. Esse é o lugar. Marcado por um padrão geográfico segregacional que se consolidou de forma nítida e ampla ao longo dos anos, imperando a expressão “Baixada para os de baixo”³. Nós somos “os de baixo”. E, nesse contexto, a Baixada Fluminense (BF) atravessa o século XIX e XX suportando diversas crises econômicas, transformações espaciais sem uma composição sólida de infraestrutura e políticas públicas de Estado, o que fez da região conhecida como “cidades-dormitório”.

A comunidade faz sua própria cultura e ela não está no campo do imaginário. São pessoas reais que compartilham nesse espaço em comum, as experiências, os sentimentos e seus projetos para um futuro melhor. Pertencem simbólica e fisicamente às esferas dos direitos e deveres, sem fugir de suas responsabilidades sobre a construção de seus rumos. Do encontro de famílias, vizinhos e lideranças locais resultam as produções de sentido para o bem-viver. Por isso, as práticas sociais em ação geram processos mais dinâmicos de participação em tudo o que ali acontece.

³ Esse texto foi originalmente publicado no site do Le Monde Diplomatique Brasil, em parceria com o Radar Saúde Favela e a Periferia Brasileira de Letras.

O município de Nova Iguaçu é um exemplo do esforço coletivo dos atores dessas comunidades que estão à margem do centro. Para nós, não é cidade- dormitório, mas sim, Cidade-Poesia. Onde todos os dias pelo menos 22 mulheres acordam dispostas a encantar alguém por meio da literatura, crendo que esta deve ser entendida como um direito humano bem como ensina Antonio Candido. Essas mulheres integram a Rede Baixada Literária que surgiu em 2009 com a missão de democratizar o acesso ao livro e leitura de qualidade na Cidade-Poesia.

Apesar da efervescência cultural na cidade, o cenário que se coloca é de apenas uma Biblioteca Pública localizada no centro do município, de difícil acesso aos moradores de áreas mais distantes e que muitas vezes necessitam de mais de uma condução para chegar lá. Além disso, é notória a concentração de recursos públicos direcionados para ações e outros equipamentos culturais no centro da cidade, excluindo ou dificultando o acesso dos moradores das periferias.

Na contramão dessa perspectiva, as bibliotecas comunitárias se mostram como um respiro à todos aqueles que buscam usufruir de ações culturais, sobretudo como forma de resistência ao que está ausente, precário ou escasso nas condições materiais que as tornam possíveis. Cada espaço é singular e assume características próprias de seus locais, legitimados pelas necessidades advindas de suas realidades. É nesse ambiente que emerge uma riqueza exponencial de potencialidades para a formação de famílias leitoras e possibilidades de interação entre os moradores da região e das adjacências, o que torna esse espaço viável para a efetivação de práticas emancipatórias por meio da literatura.

Ancorada nesta proposta e incentivada pelo Programa Prazer em Ler (PPL) do Instituto C&A desde 2006, a proposta inicial da Rede Baixada Literária era ser um grande movimento de bibliotecas comunitárias que abarcasse toda a Baixada Fluminense, parte daí o nome “Baixada Literária”. O sonho foi se transformando a partir da reflexão de que cada município da BF tinha suas particularidades, principalmente, no que diz respeito à luta por políticas públicas do livro que dependem do contexto local para serem implantadas, efetivas e executadas. Diante dessa dificuldade, optou-se em uma decisão coletiva de que o movimento fosse organizado restritamente em Nova Iguaçu, que por si só já é uma cidade geográfica e populacionalmente gigante.

Em 2010, a organização do “Polo” Baixada Literária reunia seis bibliotecas comunitárias. Conforme o movimento foi se expandindo, mais interessados em formar bibliotecas em suas comunidades foram se entusiasmando. A equipe apoiava com formações, mobilização de doações de livros, organização do espaço físico, com métodos de classificação e catalogação do acervo, além de um plano de trabalho estruturado para a sustentabilidade desses espaços.

Foi se consolidando uma grande Rede no território com um movimento literário que integrava vários atores em prol do livro, leitura, literatura e bibliotecas. Organizada sob os aspectos da Gestão Compartilhada, a Rede Baixada Literária está orientada pelo protocolo de gestão que define a participação de todas as integrantes no planejamento, na execução financeira e na prestação de contas de seus projetos. Até hoje está orientada também pelos outros 8 eixos que compõem o PPL, sendo eles: mediação, espaço, acervo, enraizamento comunitário, articulação, mobilização de recursos, comunicação e incidência em políticas públicas.

A paixão pela leitura se tornou tão imensa que crianças leitoras que frequentavam as bibliotecas comunitárias hoje são grandes mediadoras de leitura. Elas são provas vivas de que a literatura é uma ferramenta de transformação e precisa ser entendida por todos como um direito humano. Trabalham para que novos leitores sejam (trans)formados por meio de atividades literárias que estimulem a imaginação, despertem o interesse na leitura e na escrita, e, principalmente, ofereçam o direito à sonhar.

Essas atividades foram pensadas a partir de metodologias específicas para a promoção da literatura. Dentre elas, estão: os Jogos Literários – atividades que incluem o livro e a literatura em jogos de tabuleiro e populares, por exemplo: batalha naval, dominó, bingo humano, corrida do livro, pique bandeirinha literário, amarelinha literária e outras. Há ainda, performances literárias, clubes de leitura, cortejos literários, leitura compartilhada e o baú de histórias. Além destas, são produzidas atividades coletivas como Saraus, Acampe Literário, Bate-papo com autores e ilustradores, Ocupa Literatura, Correio Leitor e outras oficinas de escrita criativa, cartonera, dedoche e marcador de página. Mensalmente são realizados Fóruns Comunitários cujo objetivo é promover a participação social dos moradores nos processos de planejamento, execução, monitoramento e avaliação das ações das bibliotecas e das políticas públicas do município. A intenção com todas as atividades é que as histórias sejam ouvidas, contadas e representadas por todos os cantos.

Durante esses anos as mulheres que integram a Rede buscaram aprimorar o seu trabalho, investindo na adequação dos espaços físicos, na organização e qualificação do acervo literário, na formação da equipe, na articulação, no enraizamento comunitário, na comunicação, na gestão compartilhada e principalmente na Incidência política. De 2011 a 2014 dedicou esforços e estabeleceu parcerias para elaboração do Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas, aprovado na lei 4.439 em novembro de 2014, o primeiro do país com dotação orçamentária. Criou a Parada do Livro, um ato de mobilização em torno do livro e da leitura e também de reivindicação do cumprimento das metas do PMLLLB. Os protagonistas dessa ação são os leitores das bibliotecas comunitárias que produzem músicas, poesias, cartazes e fantasias para uma passeata nas ruas do calçadão. A participação da minha gente é a prova da importância desses espaços nos bairros, demonstra a razão da leitura ser parceira da cidadania.

Nesse percurso, a Rede têm uma longa caminhada na articulação com o poder público e agentes culturais, participando em espaços decisórios (Fóruns e Conselhos) a nível municipal e estadual, articulando-se com universidades, profissionais de diversos segmentos da Cultura, Educação, Sistema de Garantia de Direitos e, principalmente, com as comunidades ao entorno das Bibliotecas Comunitárias. É uma trajetória de ativismo em prol da luta pela garantia de Direitos, em especial do Direito Humano à Literatura, considerando os grandes desafios enfrentados nesse contexto no território de atuação.

Garantir que a Literatura seja uma Política Pública efetiva é um grande desafio, pois não depende exclusivamente da ação de agentes culturais, mas também da iniciativa do poder público. Nesse sentido, a busca de ampliar o raio de abrangência do coletivo nas demais Unidades Regionais de Governo (URGs) do município está relacionada com o desejo de envolver outros atores culturais da cidade por meio da incidência em políticas públicas, contribuindo para que o planejamento das ações seja mais democrático e participativo. Sabendo que essa é uma causa maior, desde 2015 mais de 100 bibliotecas comunitárias espalhadas por 4 regiões do país articulam a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC) para dar dimensão nacional ao trabalho de base.

A ideia do coletivo é quebrar o paradigma incutido no imaginário popular de que as bibliotecas precisam de ser lugares sóbrios, distantes, um tanto quanto burocráticos no qual imperam o isolamento e o silêncio. Mostrar que as bibliotecas são vivas. Embora hajam aqueles que ainda tentam passar a mensagem de que “pobres não leem” como justificativa para taxar os livros, a Rede se apresenta no combate desta falácia com um acervo diverso, amplo e plural que dialoga com diversos temas, como igualdade de gênero, questões raciais, LGBTQIA+, de 20 bibliotecas comunitárias para mais de doze mil leitores, de todas as idades que mesmo depois de uma pandemia continuam participando ativamente das bibliotecas.

Um instrumento basilar usado estrategicamente nas práticas e açõesculturais promovidas nas bibliotecas comunitárias da Rede Baixada Literáriaé a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). Pormeio da leitura literária e da garantia do acesso à informação, a Redeapoia os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), pois crêque aliando as metas dos ODS à missão de promover oportunidades deaprendizagem ao longo da vida, é possível empoderar meninas e mulheres,reduzir as desigualdades, lutar pelo direito à saúde, proteger oplaneta e garantir que as futuras gerações desfrutem de paz e prosperidade.Pelo incessante trabalho dessas mulheres sonhadoras, da intensaparticipação social e pela (re)existência das bibliotecas comunitárias, aRede Baixada Literária tem conquistado o seu espaço na Baixada Fluminensee no Brasil, sendo bastante premiada regional e nacionalmente.

Em 2018, ganhou o Prêmio IPL – Retratos da Leitura na categoria “Bibliotecas como iniciativas exitosas na formação dos leitores”, o 23º Concurso FNLIJ: Os Melhores Programas de Incentivo à Leitura Junto a Crianças e Jovens de Todo o Brasil em Terceiro Lugar e Menção Honrosa em 2019 no Programa de Incentivo à leitura FNLIJ. Já em 2022, foi a homenageada no Festival de Literatura Infantil do Patronato, condecorada com monção honrosa pelo Conselho Municipal de Defesa do Direito do Negro (COMDEDINE) e premiada com o Diploma Heloneida Studart de Cultura da ALERJ. Soma-se a essas conquistas, a participação na Periferia Brasileira de Letras (PBL) que, juntamente com outros coletivos literários de regiões distintas empenhados em democratizar as diversas formas de fruição literária, fortalece a territorialização de políticas públicas saudáveis na cena nacional.

Esse reconhecimento é fruto de laços fortes de uma Rede cuja identidade coletiva foi fundada pelas relações comunitárias em torno da leitura, pelos círculos de pertencimento desses espaços em ação da comunidade e não para a comunidade, e, sobretudo, pelo enfrentamento destemido em busca da igualdade e justiça social para a transformação necessária do mundo. É na luta que a minha gente se encontra e de mãos dadas vence as pequenas-grandes batalhas.

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