Bom jardim literário: resiliência da Literatura nas favelas de fortaleza

Marcos de Sá, integrante do Coletivo Periferia que Lê
Imagem: Acervo Coletivo Periferia que Lê

Imagine uma rua de favela. O que vem à sua mente? Casas mal estruturadas? Paredes com siglas de facções ou frases do tipo “tire o capacete”? Lama escorrendo por meandros onde o calçamento não passou? Funk tocando de um lado e louvores do outro em alto volume? Pessoas fumando na calçada? E um adolescente lendo um livro, imaginou?

Nas ruas do Bom Jardim, bairro onde se concentra uma das maiores periferias de Fortaleza (CE), nos deparamos com geladeiras em calçadas causando um contraste, e não é carne ou leite que encontramos nelas, apesar da necessidade diária da comunidade que não depende de filosofias para encher o prato, mas é algo bem significativo, diria até que libertador e necessário: Livros.

O projeto Periferia que Lê, nasceu no início de 2020 junto com a pandemia do COVID-19 no Brasil, quando o educador social, Marcos de Sá, morador do bairro há vinte e cinco anos, deu início a um projeto de doação de livros em uma instituição na qual era voluntário. Com o isolamento social e diante da impossibilidade de dar continuidade ao trabalho, criou o Instagram @periferiaquele apenas com o intuito de avisar a comunidade que havia livros em uma plataforma implantada em um terminal de ônibus, no qual ele depositava o que havia restado das primeiras doações. O inusitado foi que, a própria comunidade apontou para Marcos sobre o desejo de ter esses livros mais próximos e surgiram espontaneamente os primeiros doadores, de livros e serviços, como o pintor Fernando, morador do bairro, que doou a primeira geladeira e o serviço de pintura da mesma.

Desse ponto, o projeto ganhou proporção em outras ações como o surgimento de outras duas geladeiras literárias (chamadas geladotecas), coleta de livros, informativos impressos ressaltando reflexões e textos poéticos produzidos por artistas locais, criação de blog, e até mesmo o nascimento de um coletivo literário revelando vinte vozes na literatura dentro da própria comunidade, o Periferia que Escreve, que produziu a antologia “Somos a periferia que escreve”, composta por 47 textos com poemas, contos, crônicas e artigos.

Os títulos dos projetos foram escolhidos, segundo Marcos, como umanecessidade de afirmação. “Somos ainda invisibilizados na linguagemda literatura, assim como em tantas outras que exercem o papel de poderatravés da voz, escrita, falada ou cantada, e precisamos antes demais nada afirmar que lemos, escrevemos e produzimos boas artes,em uma sociedade que aprendeu a dizer que não. A desigualdade socialafeta o acesso às oportunidades e a autoestima, às vezes é como escalaruma montanha que está deslizando lama o tempo inteiro, e acreditarque o pico também é nosso, apesar da subida ser bem desgastante”.

A ação com as geladotecas, apesar de não ser inovadora, foi o que democratizou o acesso à leitura no Bom Jardim, principalmente em tempos pandêmicos, foram chegando depoimentos e procuras através das redes sociais, o que confirmou a importância de projetos assim dentro das periferias. Em 2021, o Periferia que Lê recebeu um espaço em uma associação local para montar uma biblioteca comunitária, e mais uma vez com a ajuda da comunidade e de algumas ações foi conquistado um vasto acervo de livros, estantes e algumas mesas. A biblioteca foi montada, ainda com muitas necessidades, e se uniu ao movimento Biblioteca Nazaria, o qual reuniu 12 bibliotecas comunitárias na cidade de Fortaleza, com as mesmas buscas de manutenção. Essa mobilização aconteceu nos anos de 2021 a 2022, onde ocuparam a câmara de vereadores e a SECULTFOR (Secretaria da cultura de Fortaleza) a fim de conseguirem um recurso que mantivessem essas demandas e o funcionamento das bibliotecas, o que não aconteceu até agora, de início prometeram apoio e atenção às causas, mas por fim criaram uma cortina de fumaça culpando uma e outra secretaria, e assim não deram nenhuma importância no desenvolvimento e conclusão. Wesley Farpa, da Biblioteca Adianto, afirma que “o funcionamento dessas bibliotecas reduziria o número de crianças que são todos os dias aliciadas pelo cri me, dando a elas uma nova expectativa”. Algumas das bibliotecas que estavam inseridas no projeto tiveram que fechar suas portas ou reduzir as suas atividades, sendo que não há recursos e nem apoio para o funcionamento das mesmas, como contas de água, luz e internet, manutenção do espaço, aquisição de materiais para as atividades, pagamento das pessoas responsáveis (que precisam de trabalho remunerado para sobreviver e acabam priorizando outras atividades que lhe dão sustento e colocam os projetos sociais como secundários diante da realidade dessa falta de incentivo), e as que mantém suas portas abertas sobrevivem de apoio da própria comunidade e alguns editais (quando há).

Os espaços de leitura dentro das periferias é um contraste que faz toda a diferença. O Brasil já foi rotulado muitas vezes como um “país que não lê”, o que não deixa de ser relativamente uma verdade mediante a desestrutura no incentivo à educação e das políticas públicas existentes, como a Lei Castilho (Lei nº 13.696, de 12 de julho de 2018) que em seu Artigo 3º, cláusula IX, diz ter como objetivo “incentivar a criação e a implantação de planos estaduais, distrital e municipais do livro e da leitura, em fortalecimento ao SNC (Sistema Nacional de Cultura)”, mas não é o que vemos na prática como no exemplo da ausência dos órgãos responsáveis em executar leis que fortaleçam as bibliotecas comunitárias e as ações nas áreas mais subdesenvolvidas no âmbito da arte e da cultura.O Periferia que Lê também realiza ações pontuais de contação de histórias, atividades de pintura e desenho e distribuição de livros como presentes para as pessoas da comunidade, realizados em espaços abertos e na biblioteca. É um projeto que se mantém sem nenhum apoio governamental e sobrevive apenas por doações de moradores e outras pessoas de outros estados que doam e incentivam as atividades propostas. Os desafios são constantes, o trabalho não é só entregar um livro e pensar que tudo mudou. A principal ação é acessibilizar esses livros à comunidade, mas também pensar em estratégias que mexa nessa estrutura do “não gosto de ler livro”, mostrando que a leitura não é apenas um hobby, mas uma escolha libertária.

“Certo dia, uma criança de aproximadamente oito anos, levantava- -se constantemente do chão no meio da roda de leitura sem pedir licença, ia até a recepção da instituição e trazia biscoitos que enchiam a mão. Ela voltava a sentar e quando aquela remessa acabava, repetia o mesmo percurso. O orientador não querendo interromper a leitura, mas se sentindo incomodado com aquele movimento interveio: ‘Oi, o horário do lanche já acabou, então sente-se conosco e vamos desfrutar da leitura?’. O que para a sua surpresa teve como resposta: ‘Tio, isso aqui não é mais o meu lanche, é o meu almoço. A mamãe mandou eu comer o quanto eu pudesse porque não vai ter comida de novo lá em casa’. Ele respondeu: ‘Tudo bem’, e com a voz embargada, continuou a leitura como se não houvesse escutado aquilo. A verdade é que eu escuto até hoje”. Esse é um relato verdadeiro de Marcos quando decidiu se dedicar aos projetos sociais de apoio a leitura. “Duas ou mais refeições são necessárias todos os dias para a sobrevivência, mas a educação e a leitura são os alimentos capazes de quebrar esse ciclo. Os acessos que podem fazer alguém entender e lutar pelos seus direitos e decidir: não aceito viver essa história que sempre contaram por mim. Eu vou contara minha história”.

Imagem: Acervo Coletivo Periferia que Lê

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