Todas as pessoas sentem fome diariamente. Para saciá-la, basta tomar um lanche ou fazer uma refeição. Mas a fome não é apenas uma manifestação biológica, de caráter puramente individual. Ela é a expressão da desigualdade econômica e social que privilegia o bem estar de grupos abastados, influentes politicamente, e mantém, aprofunda e multiplica a pobreza e a vulnerabilidade social de muitos outros grupos.
Portanto, não podemos abordar a fome como uma sensação comum do dia a dia, tampouco como um problema natural causado somente por intempéries climáticas, como secas e enchentes. Ao contrário, a fome é coletiva, endêmica, epidêmica. É um problema ético, político e econômico, que atinge muitos grupos sociais e que, por isso, interessa a todas as pessoas, na medida em que deve ser abordada como um problema de saúde pública.
A fome endêmica tem raízes na desigualdade social. Ela atinge, principalmente, regiões empobrecidas do planeta, tais como a América Latina, África e Ásia. Mas também ocorre em bolsões de pobreza de países ricos como EUA, Inglaterra, França etc. Essa fome afeta mais os negros, mulheres, migrantes, comunidades de povos tradicionais e a população em situação de rua. Ela expressa a xenofobia, o preconceito étnico, racial, de classe, de gênero e é agravada pela falta ou insuficiência de políticas de geração de emprego e renda, saúde, habitação, educação, reforma agrária, transporte etc.
No que se refere à insegurança alimentar, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE) a classifica em três níveis – leve, moderada e grave. Leve: há incerteza quanto ao acesso a alimentos no futuro e queda na qualidade dos alimentos, resultante de estratégias para não diminuir a quantidade de refeições consumidas; moderada: há redução quantitativa no consumo de alimentos entre os adultos e/ou piora nos padrões de alimentação; grave: há redução quantitativa de alimentos também entre as crianças, ou seja, observa-se a piora nos padrões de alimentação e a falta de alimentos para todos os membros de uma família.
O relatório da ONU Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional 2022 informa que 22,5% da população (131,3 milhões de pessoas) da América Latina e do Caribe não tinham alimentação saudável. No Caribe, a fome atinge 52% da população; na América Central, 27,8%; e na América do Sul, 18,4%. Entre 2019 e 2020, 8 milhões de novas pessoas, a maioria delas migrantes, entraram para o mapa da fome na região, devido ao aumento do custo de vida.
No Brasil, grande parte da população imigrante recém-chegada vive em situação de vulnerabilidade. Muitos chegam em busca de melhores condições de vida, assistência médica, segurança alimentar, entre outras questões. O fluxo migratório foi alto e constante nos últimos anos e, para além do processo de interiorização, os governos não ofereceram apoio a essas pessoas. Como resultado, é notável o aumento da população migrante em situação de rua e, consequentemente, em situação de vulnerabilidade alimentar. Além dos migrantes em situação de rua, as pessoas empregadas e que não se encontram nessa situação ainda sofrem com a insegurança alimentar e com a fome, o que impacta tanto as famílias na cidade quanto as famílias no campo.
O Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM) é uma entidade social ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que atua junto às pessoas migrantes, refugiados/as/es e pessoas em situação de vulnerabilidade social. A instituição está presente em quase todos os estados brasileiros e em sua atuação busca trabalhar tanto no âmbito de integração da pessoa migrante, seja auxiliando no transporte e na inserção no mercado de trabalho, na integração social e interiorização, como também luta para que a pessoa migrante tenha condições dignas e que esteja em sintonia com seus costumes e suas tradições.
Imagem: Acervo SPM
O SPM tem como uma de suas missões colaborar na luta contra a fome e a insegurança alimentar, com atuação em diferentes estados brasileiros. Com o auxílio de projetos, financiadores, arquidioceses e voluntários, a entidade desempenha serviços que possuem como objetivo sanar, nem que momentaneamente, a necessidade da pessoa migrante e sua família, dentro de cada realidade. As casas do Migrante são casas de acolhida que estão espalhadas pelo país, desempenhando as funções de: promover a integração da pessoa migrante recém-chegada, dando a ela um lar temporário e alimento dignos, auxiliando na busca por emprego e moradia.
Na região Nordeste, o SPM Semiárido desempenha atividades de distribuição e entrega de sementes para plantio, fomentando os bancos de sementes do semiárido paraibano, além de trabalhar em iniciativas como a construção de fogões ecológicos e econômicos. Em Fortaleza, algumas das missões passam por criar alternativas para fomentar a independência de pessoas migrantes, tais como capacitação para mulheres empreendedoras, curso de culinária típica, aulas gratuitas de português para imigrantes, além da acolhida de pessoas em situação de vulnerabilidade social e alimentar.
Durante e pós-pandemia, o serviço pastoral dos migrantes vem desempenhando um trabalho intenso com pessoas migrantes, refugiadas, comunidades de acolhida, pessoas LGBTQIA+ e comunidades indígenas nas regiões Norte, Nordeste e Sul, principalmente em áreas fronteiriças para a prevenção da Covid-19 e suas consequências.
Imagem: Acervo SPM
A solução definitiva desses problemas está com o poder público e para isso a sociedade civil deve estar organizada para pressionar as autoridades a tomarem providências. Essa é mais uma frente de atuação da pastoral dos migrantes, que, frequentemente, convoca mobilizações e campanhas para pressionar o poder público a agir, além de estar presente em conselhos e comitivas para sempre estar em debate com prefeituras, governos estaduais e o governo federal.
Os trabalhos executados são divididos em diversos projetos e alguns contam com o financiamento de instituições internacionais. Esses trabalhos são focados em distribuição de aportes financeiros para necessidades básicas momentâneas, distribuição de kits de higiene e cestas básicas, encaminhamento à saúde, campanhas de conscientização sobre as consequências da Covid, como o aumento da violência doméstica, da insegurança alimentar, da depressão, e outras sequelas da pandemia, além de campanhas massivas de vacinação e documentação. Mesmo sabendo que grande parte destes trabalhos não solucionam o problema como um todo, pois a questão da fome no Brasil é muito maior do que isso, ainda se tem consciência de que o gesto, por menor que seja, causa impacto na vida da pessoa acolhida.
Fica como reflexão a frase de São João Batista Scalabrini, apóstolo dos migrantes: “Para o migrante, pátria é a terra que lhe dá o pão!”