Racismo Ambiental: Quais Populações Têm A Garantia Do Bem Viver?

Maria Clara Salvador Vieira da Silva, graduanda de Filosofia pela UERJ, pesquisadora da Visão Coop e ativista ambiental
Imagem: Fernanda Marinho - Morro da Oficina

Quem enfrenta o racismo ambiental é um sobrevivente! Os efeitos dos desastres ambientais crescem em escala e deixam destruição e miséria nos lugares que acontecem. Mundialmente, até 2025, aproximadamente 17 milhões de pessoas se tornarão refugiadas do clima somente na América Latina. Segundo estudos recentes do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), cerca de 40% da população mundial é altamente vulnerável às mudanças climáticas causadas pelo aquecimento global, que ameaça também outras espécies e biomas. Sabemos que, em geral, no Rio de Janeiro, os territórios mais afetados, como favelas, periferias e subúrbios, são constantemente invisibilizados pelo Estado, lugares onde residem, majoritariamente, populações negras e pobres. Diante deste contexto, gostaria de destacar o papel da Baixada Fluminense como uma das regiões-nutrientes da capital, assim como são outras favelas e periferias do Rio de Janeiro. Podemos considerar a Baixada um alicerce econômico para o Estado. Mesmo diante dessa importância e de sua característica de abastecimento, a região também é vulnerável as mudanças climáticas, sofrendo diariamente com o racismo ambiental.

Mediante o cenário de crise ambiental, existe a necessidade de estabelecermos relações de contribuições locais para o desenvolvimento sustentável. Com dimensão territorial gigantesca, gostaria de propor uma primeira análise sobre a Baixada Fluminense, que possui uma das áreas de maior densidade demográfica do país. Nela, encontra-se aproximadamente 23% de toda a população do Estado do Rio de Janeiro, que está submetida de maneira direta a uma migração pendular em busca de trabalho e melhores condições de vida.

O recôncavo Guanabara, nome popularmente conhecido no século XIX para designar uma parte de terra que sempre ocupou a banda ocidental da baia de Guanabara, tinha como principal objetivo o abastecimento da capital. Ao longo do processo histórico e com as mudanças sociais, cada município tornou-se independente e singular. Neste sentido, é importante levar em consideração a especificidade socioeconômica e cultural presente neste território. Dependendo da problemática e da vulnerabilidade social, a solução ambiental pode ser determinada por especificidades que variam a cada território. O processo de pesquisa e análise da Baixada Fluminense não pode deixar de lado as inúmeras tecnologias e técnicas de sobrevivência de seu povo. Por isto, proponho neste texto uma ótica cartográfica, que é sobretudo afetiva, em conjunto com uma visão e um conceito da Baixada afetiva, ou seja, de um espaço geográfico que foi negligenciado, subalternizado, violentado, apagado historicamente e que, no entanto, produziu inúmeras tecnologias de sobrevivência, não apenas de autossustentação.

Destaco que fomentar uma análise deste território de maneira afetiva não é sinônimo de anular o sofrimento constante e a vulnerabilidade presente, que ocorre em decorrência da precariedade de acesso a informações, de assistência técnica e ausência de órgãos ativos fiscalizadores de e para a proteção ambiental. Isso resulta em uma realidade crítica, pois sem acesso e recursos materiais de sobrevivência é extremamente difícil realizar denúncias, construir políticas públicas de combate ao racismo ambiental e conscientizar a população.

Este texto tem como objetivo olhar para a Baixada Fluminense a partir da ótica de moradores que vivenciam o cotidiano e a rotina do município. Observo que criar um plano de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, efetivo e que possibilite soluções concretas na vida das pessoas, é extremamente necessário. Este deve ser criado a partir da consulta e escuta de pessoas que estão na ponta da vulnerabilidade climática, fomentando a autonomia das populações nos processos de tomada de decisão. Por isto, é preciso nomeá-los: estes são povos originários, quilombolas, trabalhadores, pessoas negras e a juventude, que vivenciam e criam soluções criativas através de redes e com recursos de meios digitais para as suas próprias sobrevivências.

Ao estabelecer um olhar para a sociedade brasileira, na maior parte das vezes, estes grupos mencionados não são criadores e proponentes de políticas públicas, mas apenas receptores delas, sem integração e diálogo. Vale ressaltar a existência de comunidades como estas que nomeei que são constantemente deslocadas por supostas inovações econômicas e empresariais, as quais, na realidade, provocam desastres ambientais e desconsideram aquilo que as pessoas destes territórios já construíram. Compartilho do questionamento sobre: “quanto vale uma vida em troca de dinheiro e poder?”. A partir desta perspectiva, podemos construir uma análise sobre a saúde pública, o saneamento básico, as redes de transporte e abastecimento, que são exemplos do exercício do poder estatal e empresarial e que exercem influência direta sobre a manutenção da vida, sendo que sua ausência é baseada na manutenção da morte.

Segundo o Mapa da Desigualdade 2020, proposto pela casa Fluminense, sabe-se que, de forma geral, os municípios com maior concentração em percentual de pessoas negras, como Belford Roxo, Duque de Caxias e Nova Iguaçu, por exemplo, possuem os menores índices de atendimento e acesso aos serviços de saneamento básico e de poluição atmosférica, em relação aos municípios com uma menor concentração em percentual de pessoas negras, como Rio de Janeiro e Niterói. Trata-se, portanto, do modo de operação do Estado neoliberal, que orienta a distribuição desproporcional desses equipamentos públicos de modo a constituir episódios de racismo ambiental, como nota o criador do termo, Dr Benjamin Franklin Chaves Jr.

Neste momento, a falta de saneamento básico e o racismo ambiental se entrelaçam e estabelecem conexões na forma de violentar e docilizar corpos por meio da exclusão deste direito, que na maior parte das vezes é naturalizada pela população. A Constituição de 1988 garante, em seu artigo 6, que a saúde e a segurançasão direitos sociais. Em seu artigo 196, lê-se que é dever do Estadoassegurar o direito à saúde pública de qualidade à toda populaçãobrasileira e, em seu artigo 225, é assegurado que todos temos direito àqualidade de vida e de ocupar um meio ambiente ecologicamente equilibrado.Note que existe o descumprimento da lei em detrimento de umalógica que visa o lucro. A lei garante à população o bem viver de todas aspessoas, mas podemos observar que, na prática, a garantia do bem viverestá destinada a apenas uma parte da população do Rio de Janeiro.

Gostaria de destacar o caso de Queimados, que é um dos municípios brasileiros presentes na Baixada Fluminense que enfrenta problemas relacionados ao saneamento básico. Nesse sentido, destaco os relatos de uma moradora de um dos bairros da cidade mais afetados pela enchente de abril de 2022, o Santa Rosa, que sofre com doenças de pele. “Meu corpo está todo cheio de manchas. E esses dias aí, coma última enchente, eu fiquei passando mal”. Além de descrever problemas de pele, a moradora relata também que as enchentes causam problemas psicológicos, como ansiedade climática. A senhora descreve aquilo que sente quando começa a chover forte em sua moradia: “Me dá aquele problema de nervo quando começa a chover e eu não durmo”. Para a liderança do mesmo bairro, Fernanda, coordenadora da Organização sem fins lucrativos que auxilia os moradores para a arrecadação de cestas básicas e doação de água potável em períodos de enchente, é triste observar que o Poder Público, que detém o poder de atuação nestas localidades, estabelece uma política de descaso.

No entanto, esta realidade não se restringe só a um município da Baixada Fluminense. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (SNIS), em 2018, apenas 46% do esgoto brasileiro gerado foi tratado corretamente. Além de a falta de tratamento de água e o esgoto a céu aberto causarem doenças, a falta de saneamento também contribui diretamente para a poluição ambiental, para a pobreza e a miséria do povo brasileiro. Os números apresentados elucidam que grande parte dos esgotos vai diretamente para os rios e para o mar, ou seja, parte da biodiversidade marinha e de ecossistemas também é afetada por negligência estatal. Uma das medidas urgentes e práticas é a criação de uma Secretaria Estadual de Emergência Climática para promoção de adaptação e resiliência urbana com o apoio e a participação popular, focada na prevenção de enchentes, desabamentos e outros desastres ambientais a partir de um plano de adaptação às mudanças climáticas, que priorize a população em vulnerabilidade socioambiental.

FONTES:

IBGE. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Estudos e Pesquisas • Informação Demográfica e Socioeconômica, n. 41, 2019.

IPCC AR6 (Intergovernmental Panel on Climate Change). Summary for Policymakers. Disponível em: https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg1/downloads/report/IPCC_AR6_WGI_SPM.pdf

Lima, Mariana. Racismo ambiental e injustiça ambiental: o que são? In: Politize! Disponível em: https://www.politize.com.br/racismo-e-injustica-ambiental/

VISÃO COOP. Visão para o Saneamento. Rio de Janeiro, 2020.

CASA FLUMINENSE. Relatório Casa Fluminense 2020. Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: https://casafluminense.org.br/wp-content/uploads/2021/10/relatorio-2020-final-2.pdf

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