“O acolhimento de alguns indígenas e de algumas lideranças que estão nas aldeias em relação aos que estão ‘em retomada’ ainda é um desafio…”

Entrevista com Adriana Fernandes Carajá
Foto: DRI/UFMG

Você poderia se apresentar e falar um pouco do seu processo de retomada de identidade indígena?

Sou mulher indígena do povo Karirí-Sapuyá, nordestina, filha da cabocla Jurema, benzedeira, enfermeira, Doutoranda em Antropologia Social, bolsista do programa Guatá e da Capes. Mestre em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência. Aos 35 anos, atuo como Pajé, Raizera, benzedeira.

Nasci no Sertão baiano, no município de Jequié, há duas semanas atrás da promulgação da Constituição Federal em vigor no nosso país. Jequié era um antigo aldeamento chamado Santa Rosa, terra indígena dos Kariri-Sapuyá. Quando me perguntam se eu nasci em uma aldeia afirmo com segurança que sim e mesmo se não conhecesse essa história afirmaria que sim, pois o que faz de nós indígenas são as relações com ancestralidade e as confluências. Ao nascer fui visitada pelos ancestrais da aldeia de Santa Rosa, afinal eles nunca saíram de lá. Aldeia está em nós e é isso que de fato importa. Meu nome indígena é Korã, que em Dzubucuá significa esperança, e segundo alguns parentes Kariri-Xocó falantes da língua também significa presença ancestral. Esse nome me foi dado depois de certa idade pelos meus ancestrais através de sonhos. Confesso que no início sentia certa angústia, pois não me achava merecedora de um nome tão nobre, mas com o tempo fui entendendo que esse nome foi dado a mim para que ao pronunciá-lo expressasse vida e superação.

Minha avó materna era indígena (minha mãe não sabe falar de qual etnia), meu avô materno era indígena do povo Guarani Mbya, chamado por muitos como “índio brabo do mato” e “índio ruim”, não civilizado, cultuava principalmente os espíritos e encantados das águas, encantou nas águas de um rio que passava no quintal de sua casa na zona rural do Norte de Minas. Com relação à minha ancestralidade paterna. Meu avô paterno é negro, africano e curandeiro. Minha avó paterna era indígena, era uma Bidzemú (Pajé). Natural do povo Kariri-Sapuyá, seu nascimento ocorrera em meio à expulsão da família da Aldeia de Santa Rosa em Jequié indo abrigar-se na cidade de Três Morros (ex distrito de Maracás).

Você enfrenta algum questionamento político ou público sobre o seu processo de autoreconhecimento como Kariri-Sapuyá?

Sim, muitos. O fato de ser mulher, não ter nascido na aldeia e não ter o fenótipo idealizado como as pessoas imaginam o que seja uma pessoa indígena faz com que eu tenha cotidianamente minha identidade indígena questionada.

Como tem sido para o seu povo o acolhimento em relação aos “indígenas em retomada”?

Há dificuldades de compreensão de pessoas que sejam da mesma etnia, mas que não tenham conhecimentos sobre o processo histórico dos Kariri-Sapuyá de Jequié. O acolhimento de alguns indígenas e de algumas lideranças que estão nas aldeias em relação aos que estão “em retomada’ ainda é um desafio na atualidade que tem grande influência da colonização.

Hoje, há instaurado no país um debate político e acadêmico sobre auto-reconhecimento e auto-declaração. Por outro lado, nos concursos públicos ocorrem a instauração de bancas de heteroidentificação para aferir a condição racial. Como vc avalia essa tensão entre autodeclaração e banca para aferição da condição racial?

Geralmente esses debates políticos, tem como pano de fundo a negação ao outro, a tentativa de apagamento e ou a imposição de teses em que indígena jamais foram chamados a construir, nem como protagonistas ou mesmo coadjuvantes, a invisibilização tomou contornos colonizadores desde a vinda de estrangeiros para as américas e pós 1500 no Brasil que foi invadido e saqueado. A academia ainda está longe de pagar sua dívida histórica com os povos indígenas que foram impedidos de ter acesso a ela e essa deu vazão a fala de quem não nos conhece ou mesmo acha que conheceu e são enaltecidos no ensino acadêmico de caráter elitista, atualmente não temos ainda nem um por cento de indígenas nesses espaços. A autodeclaração é um direito ainda em disputa pois a Convenção 169 da OIT apesar da pressão popular sindical para sua ratificação o que a tornou medida incluída constitucionalmente, vem sendo ignorada por interesses de uns em detrimento de outrem. Já para nós indígenas a heteroidentificação é precedida de uma série de documentos e no meu caso nunca foram questionados nas bancas de heteroidentificação, mas estou ciente de que existe e muitas pessoas indígenas são avaliadas por critérios meramente fenotípicos levando a exclusão. Não tenho experiência de banca de aferição da condição racial, mas acho perigoso quaisquer exigências biológicas tipo exame de DNA que não deveriam ser utilizados para definição de quem é ou não indígena, pois o banco de dados ainda é limitado e mesmo que houvessem registros dos povos indígenas não deveria ser utilizado para comprovação de identidade étnica, já que as mulheres indígenas e negras foram violentadas sexualmente (estupradas) pelos colonizadores e isso deve lembrado quando discutimos a formação do Estado Brasileiro.

O movimento indígena tem crescido muito no Brasil nas últimas décadas. Várias organizações surgiram e tem surgido. Você poderia nos falar um pouco sobre o processo de mobilização que deu origem à criação da Rede Nacional de Articulação dos Indígenas em Contextos Urbanos (RENIU)?

Torna-se evidenciado que parcela considerável (na maioria das regiões brasileiras esse percentual passa de 70%) da população indígena reside e\ou nasceu na cidade, conforme aponta os censos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (especialmente os de 2000, 2010 e 2022 (ainda em processo de divulgação) e especialmente nossas pesquisas e trabalhos de campo que apontam números até maiores dos apresentados), e que esses indígenas são invisibilizados não tendo acesso às políticas públicas específicas para indígenas de modo geral e não há políticas públicas para os indígenas em Contexto Urbano e Migrantes, especialmente no que se refere ao marcador social geracional.

Nós indígenas que estamos em Contexto Urbano sofremos preconceitos de todos os tipos (começando quando nos tiram o direito de sermos indígenas onde estamos quando a sociedade afirma que o indígena deixa de ser indígena na cidade) e não temos acesso à educação adequada (além disso não existe de fato a implementação da lei 11.645/08 – que aborda a temática indígena em sala de aula nas escolas não indígenas de forma transdisciplinar/ampla/atual – e também não existe uma política de educação indígena em contexto urbano para o indígena que vive na cidade) e à saúde diferenciada (assim como não existe a implementação da portaria 508/2010 do SUS que aborda sobre o cadastro do indígena e sua etnia no cartão SUS na cidade onde mora e sua consequente atualização (muitos povos não estão inseridos na tabela da portaria) e também políticas municipais de saúde aos indígenas que moram em cidades a ponto de sempre terem vacinação negada como grupo prioritário que é seu por direito), emprego e trabalho digno (especialmente dentro da temática indígena), geração de renda e políticas públicas que respeitem os nossos modos de ser e viver indígena, não possuímos direito a voz nem nos espaços de participação política para indígenas de modo geral, ou locais que se discutem as especificidades dos povos indígenas em cidades.

Vivenciamos as mesmas dificuldades dos indígenas que estão nas aldeias somadas às especificidades da cidade, pois a vulnerabilidade está associada a questões socioeconômicas como moradia, água potável, falta de emprego e trabalho digno, além do preconceito. Dentre os muitos impactos ambientais enfrentados por nós indígenas na zona urbana, destacamos: enchentes, lixos urbanos, poluição do ar e sonora, despejo de esgoto sanitário nos rios, derrubada de árvores nativas, problemas que afetam diretamente os recursos naturais e a qualidade de vida.

Nessa perspectiva, a Rede Nacional de Articulação dos Indígenas em Contextos Urbanos e Migrantes (RENIU) iniciou suas atividades em 2020, após alguns anos de reflexão, por meio de atividades promovidas pelo Programa “Índios na Cidade “da ONG Opção Brasil em conjunto com grupos indígenas de alguns lugares brasileiros com a proposta de fortalecer este trabalho e apoiar os indígenas que vivem nas áreas urbanas e fora de seus territórios. Nosso trabalho no Programa “Índios na Cidade” existe há mais de 26 anos. Já realizamos mais de 5 relatórios para a ONU e o Fórum Permanente Indígena sobre o tema que atuamos. Também existe muito preconceito sobre esta população: o Governo e a Sociedade diz que os indígenas deixam de ser indígenas ao morarem nas cidades.

Qual é a composição e a forma de atuação da RENIU?

A RENIU é formada por indígenas, indigenistas e por Coletivos de Indígenas em Contextos Urbanos de diversos lugares do Brasil. Sua coordenação é composta por Adriana Fernandes Carajá (Kariri-Sapuyá da Bahia ), Maria Lídia Ferreira de Melo (Tupinambá do Maranhão) e Eni Carajá Filho (Carajá de Minas Gerais) e Marcos Júlio Aguiar (indigenista).

Algumas entidades que participam da Articulação Nacional são: Programa “Índios na Cidade”, Associação Indígena Karaxuwanassu da cidade de Recife, Grupo Indígena Urbano da cidade de São Luís, Grupo Indígena Carajá da cidade de Belo Horizonte, Associação Indígena Pankararu da cidade de São Paulo, Associação Indígena Pankararé da cidade de Osasco, Grupo Indígena Kaimbé da cidade de Guarulhos, Associação Indígena Etnocidade da cidade de Campinas, Associação Indígena O Brasil é Minha Aldeia (ABRAMA), Grupo Indígena Urbano da cidade de Porto Alegre.

A RENIU atua por meio de participações em reuniões, assembleias, ocupando vagas em diversos conselhos de direitos; na elaboração de projetos sociais, de geração de renda; na realização de visitas às famílias em condições de vulnerabilidade, seja nas periferias e/ou nos abrigos de acolhimentos aos indígenas Waraó. Além disso, na organização de eventos e feiras culturais, de economia solidária, dentre outros.

Esta gostando do conteúdo? Compartilhe

Veja Também