“São das pernas de uma mulher negra que escorre a estrada da história”

Heloísa Helena Costa Berto, Iyalorisá Luizinha de Nanã, Defensoras de Direitos Humanos
Foto: Acervo pessoal Luizinha de Nanã

Ao refletir sobre a saúde da mulher negra, meu pensamento é guiado pela memória de minha avó paterna, Benedita. Uma mulher de vida árdua, ela desempenhava o papel de lavadeira. Jamais a vi repousar na sala, desfrutando de momentos de relaxamento e conversa. Sempre a encontrava na cozinha, preparando meticulosamente o almoço e o jantar, ou à beira do tanque, com seu vestido surrado, lavando roupa ou limpando peixe.

Um dia perdeu uma das pernas, pois furou um pé no quintal enquanto tirava a roupa da corda. A automedicação foi feita com: vinagre, cebola e alho amassado, amarrando bem forte no pé. Não falou com ninguém que tinha se acidentado. Até o dia que não conseguiu mais esconder o pé, pois não conseguia mais andar. Ele estava inchado e com uma coloração diferente. Foi para o hospital e perdeu a perna, era diabética. Isso ocorreu há mais de 30 anos e ainda é angustiante perceber que nos dias atuais, ainda existem mulheres que optam por “esconder o pé”, acreditando que o problema passará por si só, menosprezando infecções sérias ou considerando mais proveitoso permanecer em casa do que enfrentar o médico, temendo uma abordagem desrespeitosa e negligente.

Infelizmente, essa realidade é comum entre as mulheres negras. Os hospitais encontram-se distantes, sempre abarrotados e muitas vezes oferecem atendimento desprovido de respeito. Somos frequentemente negligenciadas, os médicos deixam de nos examinar, e a sensação de ter perdido o dia ao procurar ajuda é avassaladora. Assim, recorremos a paliativos, sofrendo em casa com males como tosse persistente, e quando finalmente buscamos ajuda, muitas vezes é tarde demais. O caroço inofensivo no peito se transforma em algo incurável, a tosse aparentemente trivial revela-se mais do que uma gripe, e diversas doenças evoluem, ceifando vidas sem que as mulheres compreendam completamente a razão desse desfecho, e isso não é culpa delas.

A culpa reside nas políticas públicas que regem o sistema de saúde no Brasil, limitando o acesso integral aos serviços para os menos privilegiados. A saúde, infelizmente, parece ser um privilégio reservado a poucos neste país. Muitas de nós então pensam para que ir ao médico? Para que nos olhe e nos mande tomar um comprimido qualquer? Estas mulheres em geral trabalham sem carteira assinada, sendo assim não podem faltar, senão pode faltar o dinheiro para o pouco alimento.

A falta de exame ou de apenas um olhar mais humanizado é evidente, uma vez que quando somos observadas, ouvimos palavras ofensivas sobre nossos corpos tipo: “Odor forte o seu”. A atitude de não procurar um médico seria uma realidade da avó de minha avó que era escravizada e não tinha acesso ao médico. Pensar que minha tataravó, minha avó, e hoje algumas outras mulheres negras, poderiam ter a mesma atitude diante da dúvida ou até uma certeza de que ir ao médico seria perda de tempo, me deixa com uma infelicidade e uma dor profunda, uma melancolia perante a vida. Isso é um sinal de que o país não avança em meio às políticas públicas em favor da saúde das mulheres negras. A mulher negra moradora de comunidade ou da periferia está sempre na dúvida sobre se vale a pena perder o dia dentro de um hospital na emergência esperando. Vale a pena perder esse tempo? Sim o termo é “perda de tempo”.

Foto: Acervo pessoal Luizinha de Nanã

A triste realidade é que não há atendimento emergencial adequado, como também não há atendimento ambulatorial público adequado. Minha avó assim como eu e minha comunidade, não conhecem os números estatísticos, mas sabem, por experiência própria que na entrada de um hospital público ou particular, a primeira coisa que ocorre é o racismo institucional através de um atendimento grosseiro ou desatento.

Durante a gestação, um período que deveria ser um dos mais belos em nossas vidas, 60% de nós enfrentamos a tragédia da morte gestacional, pois não recebemos atendimento eficiente. Durante o pré-natal, 56% de nós experimentamos consultas limitadas, com menos atenção, e, durante o parto, menos anestesia. O estigma colonialista persiste, impondo a ideia absurda de que as mulheres negras são excepcionais parideiras, capazes de suportar dores intensas. Após o parto, a negligência persiste, com falta de orientação adequada sobre a amamentação e muitas doenças maternas contraindicando a prática. Sífilis gestacional, que agora representa 57% dos casos em mulheres negras, é apenas um exemplo das complexidades e desafios que enfrentamos, caminhando em círculos, sem um rumo claro, em busca de segurança e equilíbrio. Este sentimento de que nós mulheres negras e pobres andamos sempre em círculos quando se trata de saúde é desesperador. Somos a base da pirâmide social e econômica, vivemos vagando à procura de trabalho e nossas caminhadas são difíceis e repletas de restrições. Mesmo após dedicarmos esforço e estudo para nos especializarmos, as oportunidades ainda são limitadas devido à persistência de episódios de racismo e machismo estruturais, mantendo as desigualdades salariais como uma realidade constante. Ao longo desta trajetória são colecionados efeitos desastrosos sobre nossas mentes: ansiedade, depressão, síndrome da impostora e pânico. Não temos o “direito” de sermos diagnosticadas com esses males, não temos tempo para diante dos compromissos com os filhos, as contas a pagar, a moradia insalubre, os sonhos pequenos não realizados, o amor não correspondido, a solidão, a violência doméstica. Saber que sua vizinha negra morreu nas mãos do marido violento, ver no jornal a foto de um menino negro morto, menino com a idade de seu filho.

Foto: Acervo pessoal Luizinha de Nanã

Assim continuamos um dia atrás do outro, um pé à frente do outro, com sorrisos vazios e a tristeza escondida. Nossa única esperança vem da fé, uma fé que veio antes de nós, veio dos nossos ancestrais. Minha avó sofreu muitas violências, lutando até os 76 anos, a mãe de minha avó que era escravizada e se manteve viva em piores situações, morreu muito mais nova que minhas duas avós. Estamos lutando em nome de nossos ancestrais para que tenhamos uma vida mais digna e continuaremos a lutar. Isso requer a prática do autocuidado, perceber os impactos do racismo e da escravização em nossas mentes é um início. Precisamos resgatar nossas mentes através da fé, do trato do próprio corpo, da arte, autopreservação, da solidariedade, dos sonhos da família, do afeto do ser humano. Assim venceremos. Assim podemos constituir nossa luta e cura no autocuidado, na sororidade.

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