Nasci na ditadura, no ano de 1971, na Favela do Acari. Nasci em casa. Ou melhor, num barraco, que pegou fogo depois e foi substituído por um barraco de tijolo do governo e foi vendido por familiares. Nós, as filhas, nunca vimos a cor desse dinheiro.
A lembrança, entre tantas, é por volta dos meus cinco anos. A imagem e a dor que me vem é a da fome. Minha mãe, nessa época, muito jovem mãe, solteira, hoje se diz mãe solo, tinha eu e minha irmã Tina pra sustentar. E quando minha mãe ficou grávida da nossa irmã Paulinha, hoje com 48 anos, e quem não vejo desde os dois anos de idade, a situação só piorou. Então a coisa ficou muito complicada em matéria de sustento. Ninguém aceitava minha mãe por ela estar grávida.
A vida estava uma carestia só (1978/79), ainda estávamos na ditadura. Eu sabia lá na época o que era isso? Mas sabia o que sentia, o que doía. Era a Fome. Lembro muito da minha mãe cozinhando à lenha ou no fogão de lata com querosene. Aliás, que ninguém faça isso, mas minha mãe por centenas de vezes misturava querosene com açúcar para dilatar meus brônquios. Fui uma criança com bronquite crônica e saúde, não tínhamos medicamentos. Viva nosso SUS de cada dia! Nos dias de hoje mais ainda!!!
Tomei minha primeira dose da Pfizer agora, no dia 19 de junho. Aproveito pra externar minha profunda gratidão à ciência e aos profissionais de saúde: médico, enfermeira, técnico/auxiliar de enfermagem, ao motorista de ambulância, administrativos, etc. Não sei dizer se foram as simpatias, ou minha mãe, pois após a morte dela, minhas crises cessaram. Meus ancestrais devem ter as explicações. Aliás, não sei o que teria sido de mim se não fossem eles e os orisás.
Mas, voltando à fome nos período da minha infância, lembro que por diversas e muita vezes não tínhamos nada. E quando digo nada, é nada mesmo. Me recordo de um natal em que minha mãe preparou comida o dia inteiro e a mulher disse que só a pagaria alguns dias depois; ainda revistou a bolsa da minha mãe e contou todos os assados antes de sairmos. Ou seja, senti cheiro de comida gostosa o dia todo e a noite não tínhamos o que comer. Lembro-me desse natal até hoje, da minha mãe chorando.
Foi assim que aprendi a cozinhar. Vendo minha mãe cozinhar. No meu primeiro arroz, eu tinha a idade de seis anos. Minha mãe doente. Estava sobre uma cama de várias tábuas e panos. Não tínhamos cama.
Nossa alimentação, repetidas vezes, era mingau de farinha de trigo, de fubá, cuscuz de bafo, farofa e bolinho frito de farinha de trigo. Arroz era festa. Fruta mais ainda. Talvez seja por isso minha aversão à carne vermelha! Mas a minha mãe não pedia nada a ninguém, nem mesmo às irmãs casadas. E não nos deixava falar dos nossos sofrimentos com ninguém. Quando a Folia de Reis passava, era uma festa. Porque as casas se abriam e tinha comida pra todo mundo. Só voltei a ver isso no candomblé, três décadas depois. E assim fomos vivendo.
Entre meus sete e oito anos, quando minha mãe osun percebeu que eu já tinha condições de atravessar uma rua sozinha, ela me mostrou o caminho da comida. Estava tão perto. Eu comia sempre legumes e frutas na casa de uma colega na favela e um dia disse à ela: “Sua mãe é rica. Aqui sempre tem tanta coisa pra comer: frutas e legumes”. Ela me respondeu: “Rica nada. Minha mãe pega na Ceasa”. Então perguntei: “Onde é a Ceasa?”. Ela me me respondeu: “Do outro lado da rua”. Vocês devem estar se perguntando por que eu passava tanta fome, se morávamos tão perto do Ceasa. Porque minha mãe não pegava nada. Orgulho? Não sei. Talvez. Gostaria de poder lhe perguntar. O fato é que a partir do dia em que aprendi onde tinha a comida na Ceasa, nunca mais passei fome.
Apanhei da minha mãe algumas vezes por ir atrás do alimento, mas disse a ela que preferia sentir a dor das pancadas do que a dor da fome. Por fim ela parou, porque além de acabar com a fome dentro da minha casa, da minha família, eu passei a ganhar dinheiro com a Ceasa. Ajudei uma mulher que veio do Sul com seu marido e moraram no mesmo beco que eu, ela estava grávida. Eu ajudei a varrer e passar pano e outras coisas. Juntei dinheiro, comprei três bacias plásticas e passei a vender legumes e frutas da Ceasa na Favela do Acari. Do que eu conseguia pegar na Ceasa fazia outra seleção em casa e vendia. Todo dia tinha dinheiro.
O interessante foi que o marido dessa mulher, não consigo lembrar mais o nome, ele arrumou emprego de copeira com carteira assinada para minha mãe, numa fábrica de quadros no Encantado. Não sei se ainda existe. E foi com esse emprego que minha mãe pôde nos deixar uma pensão. Pensão essa que não tivemos muito acesso, pois foi usada pela família. Digo isso porque minha mãe veio a óbito aos trinta e um anos de idade, de infarto. Seu corpo de mulher negra não suportou a dureza da ditadura e a pressão do racismo.
Após passar muitos anos, me deparo com a campanha contra a fome do Betinho, através da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, na década de 1990. Vejo o quanto é perverso o capitalismo. E nos dias de hoje, na pandemia, vejo a luta da sociedade contra a fome e por vacina. E a pandemia também nos mostra o Brasil que sempre foi denunciado pelo Movimento Negro e de Mulheres Negras: o Brasil racista e desigual. Nossos antepassados construíram as riquezas do capital não só aqui no Brasil, mas na maioria dos países nas Américas e Europa. E no entanto, nós, os descendentes, não temos o mínimo como o direito à comida e à existência. Morremos que nem barata no Brasil. Fruto de uma política de Estado racista.
A primeira vítima de Covid-19 no Rio de Janeiro foi uma mulher negra, empregada doméstica. Essa categoria de trabalhadoras composta em sua maioria por mulheres negras convive no seu cotidiano com as violências oriundas do período mais nefasto da humanidade: o período da escravização e tráfico de mulheres, homens e crianças, sequestradas do continente africano para diversas partes do mundo para enriquecer o capitalismo.
Nessa pandemia tem pipocado casos e mais casos de mulheres negras resgatadas pelo Ministério Público do Trabalho em situação análoga a escravidão. Só aqui no Rio de Janeiro temos dois casos na Zona Norte. Organizações como a ONU Mulheres Brasil, Organização Internacional do Trabalho (OIT), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro (MPT-RJ), Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos, Movimento Negro Unificado (MNU-RJ) e Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) têm feito uma belíssima campanha para sensibilizar a sociedade a denunciar e impedir esses casos, assim como divulgar dados sobre a situação dessa categoria durante a pandemia.
O trabalho doméstico foi considerado essencial nessa pandemia, mas as trabalhadoras domésticas não foram inseridas na prioridade de vacinação. Só agora, bem recentemente, foi aprovada a Emenda nº 12 de autoria da Deputada Federal Benedita da Silva ao Projeto de Lei nº 1011/2020. Essa Emenda inclui as trabalhadoras domésticas no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra Covid-19.
O período que acho que tivemos uma trégua em matéria de fome foi num tempo não tão distante com diversas políticas de soberania alimentar. E agora, vivemos com a voz da fome, com o aumento da fome por onde andamos no Brasil. Recentemente, eu estava comendo em um restaurante numa mesa na calçada com minha irmã Rogéria quando se aproximou de nossa mesa uma pessoa em situação de rua. Ele dizia: “É fome. É fome. É a fome, moça. É fome. É fome”. Enquanto perguntava se podia pegar o que sobrava à mesa. Esse homem falava com uma entonação tão doída e desesperada que nem eu, nem minha irmã, conseguimos esquecer. Porque só quem já passou e sentiu, sabe e conhece a dor e a voz da fome. Essa dor nos mata. Mata nossa saúde. Nossa existência. Nossa dignidade.
Osalá queira que nós humanos nessa terra, tenhamos a dignidade de fazermos um pacto pelo fim da fome no Brasil e na humanidade.
Imagem: Acervo pessoal Adriana Martins