“…A gente tem modos de vidas sendo exterminados…e a gente vê que a primeira coisa a ser afetada é a saúde.”

Entrevista com Gilberto Oliveira – Margem do Rio
Foto: Acervo pessoal: Beto Oliveira

Você poderia se apresentar?

Meu nome é Gilberto Oliveira, artisticamente conhecido como Margem do Rio. Sou farmacêutico formado pela UFRJ. Hoje eu sou residente do 2º ano no Programa Multiprofissional de Residência em Saúde da Família na ENSP – Fiocruz. Tenho 26 anos, sou amazonense, sou um homem afro-indígena, hoje moro no Rio de Janeiro. Também sou fotógrafo, artista visual e nos meus trabalhos, eu procuro sempre evidenciar o território de onde eu vim, que é a Amazônia, que é Manaus.

Gostaríamos de conversar um pouco sobre as identidades indígenas, negras e há quem fale em identidades afroindígenas. Como tem se dado os processos de autodeclaração dessas identidades em Manaus?

Os processos de autodeclaração são hoje, nos centros urbanos, cada vez mais presentes. Acontece hoje uma mobilização que a gente consegue até ver pelas redes sociais, consegue ver pelos movimentos dos grupos de ativismo também, essa procura por essa autodeclaração identitária. E no contexto amazonense, em vários lugares que a gente chama de ‘aldeias urbanas’, você encontra diversas populações que vêm muitas vezes do interior, vêm de suas aldeias. São pessoas indígenas e até mesmo quilombolas e vão para a cidade, fazem esse movimento. E aí, a autodeclaração no meio disso se faz presente no exercício da procura pelo seu direito, quando essa população vai ali exigir os seus direitos, a autodeclaração vai aparecer.

Uma contrapartida contra essas populações é o pensamento hegemônico, um pensamento muito racista que se sobrepõe na cidade, pelo menos, na capital. Eu venho de Manaus, e em Manaus a gente ainda tem muitos símbolos racistas contra a população indígena, contra a população quilombola. Esses símbolos estão presentes na cidade. Não só nas estruturas, mas também nos hábitos, no comportamento mesmo do amazonense; quando a gente faz alguma piada usando o termo “índio” num péssimo sentido, ou então quando a gente não aceita ser comparado a pessoas indígenas, ou não aceita ser comparado a pessoas do interior. Até mesmo a hierarquia de conhecimento, de achar que as pessoas do interior são menos inteligentes. Todas essas questões aparecem em Manaus, e elas fomentam esse combate à própria autodeclaração porque aí acontece o medo das pessoas se autodeclararem como indígenas, como quilombolas, justamente por causa desse receio de sofrer algum tipo de ataque que pode ser direto ou pode ser indireto também.

Eu também venho desse movimento cultural e dentro dessa cena artística em Manaus, eu também percebo um outro gatilho que traz a autodeclaração que é essa busca pela ancestralidade, esse caminho de volta, né? Fazer o retorno, olhar pra trás, ver quem são seus avós, suas tias, da onde você veio, de qual território você veio. E a arte, essas pessoas enquanto artistas, elas usam a arte para fazer esse movimento. Então, esse é outro processo que têm acontecido na cidade. Como se deu o seu processo de autodeclaração?

O meu processo de autodeclaração é interessante porque eu vim me perguntar o que eu sou quando eu saio do Amazonas, quando eu chego no Rio de Janeiro. E aí, no Rio, eu começo a perceber que eu sou uma pessoa não-branca e começo a participar de espaços políticos do movimento preto, do movimento indígena e aí eu começo a me identificar. E aí depois aparece a arte, eu também enquanto artista, não só como trabalhador da saúde, mas também no meu papel como artista, eu começo também a flertar com algumas identidades e começo a perceber que muito da história da minha família me traz, me trouxe até aqui. Meu processo de autodeclaração começa comigo primeiro me entendendo dentro da cidade, uma cidade diferente de Manaus, uma cidade maior que é o Rio. E o Rio de Janeiro, ele traz muita história da escravidão, tem esse grande marco na história brasileira que foi o tráfico negreiro e o Rio se destaca nessa história. A escravidão aconteceu em todo o Brasil, mas o Rio ganha esse destaque por ser onde chegavam os nossos ancestrais, onde muitos indígenas também foram utilizados como essa obra de mão escravizada. Então aqui, essas histórias, essas influências, os grupos que eu participei, tudo isso foi me influenciando na minha autodeclaração e hoje eu estou nesse processo ainda e eu não sei se ele vai ter um fim algum dia ou se eu vou conseguir achar uma resposta. Hoje, eu me entendendo como um homem negro, sou lido também assim pela sociedade, mas eu reconheço a minha parte indígena nesse processo, porque uma parte da minha família é quilombola, mora em quilombo ainda, e a outra parte da minha família veio de São Gabriel da Cachoeira, o município mais indígena do Brasil, e onde meu avô morou em aldeia, falava 3 línguas indígenas. Meu avô também fez esse movimento migratório de ir para a cidade para buscar condições de vida, para não passar fome também.

“Hoje minha identidade é atravessada por esses dois
mundos: o mundo indígena e o mundo da negritude.
Percebo que hoje eu levanto muito essa identidade
“afro-indígena”, nesse sentido do “afro-indígena”
representar os meios de onde eu vim. Existe uma
polêmica em torno deste termo aqui no sudeste;
lá no norte é muito conhecido este termo afroindígena,
inclusive usado nos espaços acadêmicos,
tem trabalhos na UFPA, na UFAM, que se utilizam
deste termo e este termo faz muito sentido quando
a gente fala do norte no seu processo social,
histórico, político, econômico.”

Mas hoje, eu encaro este termo
afro-indígena como um termo
que começa a explicar de
onde eu vim, talvez ele não
vá ser definitivo para a minha
declaração, mas ele é o termo
a partir do qual eu começo a
entender a minha história.

Foto: Acervo pessoal Beto Oliveira

Você é uma pessoa que transita entre estados com perfis populacionais diferentes, como Amazônia e Rio de Janeiro. Como você vê as presenças e identidades negras e indígenas nessas duas regiões?

Eu me mudei pro Rio de Janeiro em 2015. Saio de Manaus e venho pro Rio, desde então, durante esses 8 anos, mais ou menos, eu estou nessa ponte aérea. Eu sempre volto pra Amazônia, sempre volto pra Manaus, Santarém e volto pro Rio. Sempre estou fazendo esse translado e eu percebo que existem contextos muito discrepantes. O Rio, não só o Rio, o sudeste em si, tem uma história de ocupação nas cidades, de marginalização, a criação das favelas. Todos esses processos aconteceram e acontecem na região norte, mas é totalmente diferente. Eu gosto de destacar isso porque, a partir desta definição de que é totalmente diferente, a gente consegue, começa a conseguir entender como é a presença negra e indígena nas cidades. A região norte comporta a maior população indígena, segundo o Censo, mas é também onde você encontra muitas pessoas pardas. Partindo disso, a presença negra e indígena vai variar, não só no perfil racial. Digamos assim, é muito mais amplo, é nos hábitos, é nos comportamentos, é no cotidiano da cidade, na forma como a cidade funciona, principalmente nas políticas públicas.

Hoje, o perfil populacional, ele não vai ser tão diferente, mas a gente vai encontrar as diferenças nas organizações e como essas pessoas se organizam na região sudeste. Eu percebo que os movimentos de autodeclaração, de autoidentificação estão muito potentes assim porque eles encontram acolhimentos nesses coletivos, nesses espaços muitas das vezes até institucionais, vêm do próprio Estado, o Estado permite que haja espaço para que movimentos sociais, por exemplo, de negritude, de movimentos indígena consigam se organizar. Minimamente? Minimamente. De uma maneira precária? De uma maneira precária. Mas existe esse movimento. Quando a gente olha pra região norte, isso ainda não está sendo feito 100%, integralmente. O Estado na região norte, ele ainda é muito violento e não oferece nenhuma contrapartida para essas populações marginalizadas se organizarem.

Que diferenças e semelhanças você identifica entre Manaus e Rio de Janeiro?

As diferenças são essas, esses aparelhos que aqui funcionam muito bem e na região norte ainda não funcionem tão bem por conta disso: essa parceria, digamos assim, com o Estado; uma parceria que não é bem uma parceria… essas migalhas que o Estado oferece aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, para os movimentos sociais se estruturarem, ele ainda não tem acontecido em Manaus, que é a capital do Amazonas, e isso, eu vejo como uma diferença muito importante de ser considerada. E nesse ritmo de autodeclaração, eu percebo que Manaus hoje já está mais atenta à identidade indígena, à identidade quilombola também; ela tem aparecido mais. Acho que uma grande semelhança é a insistência dessas populações em criar válvulas de escape para sobreviverem. Eu acho que isso é uma semelhança em nossos povos em qualquer região, eu acho que isso é o que liga a gente, a gente está sempre lutando, sempre exigindo o básico. Então, às vezes, a gente pode cair num relato de que talvez falte mais mobilização na região norte, de que as pessoas têm que se mobilizar mais e eu acho que não é bem por aí. Eu acho que as pessoas se mobilizam, têm seus interesses, mas eu acredito muito que também tem que ter essa contrapartida. A população se mobiliza, sim, mas ela precisa ser vista, precisa ser ouvida, precisa ter políticas públicas para que essa mobilização funcione, então, acho que diferenças e semelhanças, a gente pode deixar isso bem destacado.

No seu entendimento, é possível estabelecer relação entre o reconhecimento de si enquanto indivíduo indígena, negro ou afro-indígena e a manutenção de sua própria saúde? O reconhecimento e identificação de suas origens pode ser compreendido como parte do processo de saúde, de uma maneira mais ampla?

Eu acho importantíssimo o reconhecimento e a autoidentificação como um processo de uma saúde integral de uma pessoa. Saber da onde você veio, saber quem você é, é também uma parte que influencia no equilíbrio de nossa saúde mental, do nosso bem-estar, da nossa maneira de estar no mundo. Isso, a gente consegue observar através de vários conhecimentos tradicionais, da oralidade de nossos avós, quando a gente vai no território indígena e a gente vê como aquelas pessoas são tão afins umas às outras e tem uma afinidade tão grande com a terra, que ela sabe que ela pode contar com a terra, que ela pode contar com o rio e ela entende que ela faz parte daquilo e ela entende de onde ela veio. E quando a gente percebe que essas relações são perturbadas, no sentido de algum agente externo perturba esses indivíduos, essas populações, a saúde é uma das primeiras coisas a serem afetadas.

“A gente hoje tem um grande perfil de suicídio
nas populações indígenas em áreas que
foram invadidas por grileiros, por mineiros,
por garimpo, a gente tem um grande
assédio nessas zonas, a gente tem águas
contaminadas, a gente tem modos de vidas
sendo exterminados por conta desses agentes
externo. E a gente vê que a primeira coisa
a ser afetada é a saúde.”

Para uma política pública indígena e uma política pública negra ser eficiente ela precisa que os indivíduos que fazem parte dessa política estejam conscientes de sua identidade. É muito incrível você se conectar de novo com o lugar de onde você veio e isso precisa ser feito nas cidades. As cidades também são lugares onde a gente precisa estar, independente do movimento que foi feito, se foi uma diáspora não planejada, se foi uma diáspora forçada, como tantas vezes é, a gente vê tantos familiares que são forçados a sair do interior e ir para a cidade para buscar a tal vida melhor que prometem e uma das primeiras coisas que se faz é se despir do que você é para você se adaptar à cidade. Eu acho que é preciso continuar ciente de onde veio e de sua identidade para acessar saúde, educação e tantos outros equipamentos que fazem parte da nossa vida, para acessar cultura. Eu acho que tudo isso é saúde.

Dentro de sua experiência profissional, é possível ver relação entre as ocorrências de determinadas doenças e grupos étnicos específicos? E no tocante à postura da saúde pública, você acredita que há diferenças entre grupos?

Dentro da minha experiência, é super possível ver essa relação sim. Mais do que isso, na verdade, até além da minha experiência, hoje a gente tem dados, dados científicos que mostram que sim, existe uma prevalência de doenças crônicas não-transmissíveis na população negra, na população indígena. A gente sabe que, por exemplo, a tuberculose, ela prevalece demais em populações indígenas e populações negras. Então, hoje no Brasil tem um perfil epidemiológico que marca muito bem as populações negras e indígenas. Essa relação, eu consigo ver no meu trabalho. A gente teve um momento no ano passado que fez uma pesquisa na região que a gente trabalha, eu e a equipe que eu faço parte, a gente trabalha na zona norte do Rio de Janeiro, numa comunidade e lá a gente fez um trabalho de tuberculose onde os resultados epidemiológicos são muito parecidos com diversos outros trabalhos pelo Brasil e a gente vê a grande semelhança na população que é acometida por essa doença: são, em maioria homens, homens negros, na faixa de idade de 20 a 30… Eu estou usando esse exemplo, mas se a gente for ver a prevalência de hipertensão e diabetes, o perfil vai ser muito parecido em vários territórios no Brasil. Hoje, a gente tem políticas públicas muito interessantes dentro do SUS, por exemplo, a política da saúde integral da população negra, a gente tem a política de saúde indígena. Então, isso são ferramentas, dispositivos que ajudam a gente a manusear os casos dentro da área da saúde. Mas, enquanto a postura, eu acho que ainda falta muita coisa. É isso, as políticas existem, mas elas não são totalmente implementadas e executadas. Eu acho que ainda faltam muitos dispositivos territoriais, até. Eu acho que a gente acaba pegando muito essas macropolíticas, essas referências e direcionamentos que são gerais, são feitas pro Brasil inteiro, mas não adapta, não consegue adaptar ao território. Uma política de tuberculose para uma população em Manaus, ela não vai poder ser aplicada no Rio de Janeiro. Esse é o ponto que eu quero trazer. Eu acho que falta essa postura da saúde pública em personalizar as políticas para cada região, isso é uma estratégia que precisa ser feita e, muitas das vezes, não é possível observar no dia a dia, no trabalho.

E, claro que a gente não pode deixar de
falar do racismo, esse grande sistema em
que a gente se encontra, então, estratégias
de combater o racismo e a discriminação
precisam também ser cada vez mais
implementadas e colocadas à disposição.

E os profissionais da saúde também precisam ter na sua formação essas influências, esses aprendizados. Por exemplo, eu me graduei e o acesso que eu tive à disciplina sobre a população indígena, a população ribeirinha, a população negra foi porque eu procurei, porque eu fui atrás das disciplinas, não estava ali na minha grade curricular. Então, a gente tem ainda esse problema muito grande na formação do perfil de um trabalhador, de uma trabalhadora da saúde que ainda tem alguns déficits, que é justamente estudar a maior população brasileira que são as pessoas negras e indígenas. Mas não só, eu acho que as instituições, elas precisam cada vez mais fortalecer essa capacitação sobre essas políticas, sobre esses acessos, capacitar esses profissionais pra atender esses grupos tão diferentes. Isso já existe, a gente vê hoje aqui no Rio de Janeiro, pelo menos, a secretaria municipal de saúde, ela incentiva. A gente tem a grande instituição, que é a Fiocruz, que oferece muitos cursos e capacitações que são muito úteis, muito válidas, mas é necessário que isso seja cada vez mais presente, que tenha cada vez mais espaços para que os profissionais de saúde possam se apropriar desses conhecimentos também e poder ofertar um cuidado em saúde integral e de fácil acesso a essas populações tão diferentes.

Foto: Acervo pessoal: Beto Oliveira

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