A história que o agro não conta: violência, fome e devastação

Mariane Martins, é integrante do Radar Saúde Favela – Fiocruz.

Não faltam dados sobre a implicação e o impacto do agronegócio nos conflitos por terra no Brasil, em crimes ambientais, na violência armada praticada contra os povos originários, em denúncias de trabalho escravo e na fome. Há uma vasta documentação produzida sobre as violações de direitos que ocorrem cotidianamente no campo brasileiro. Diante de tudo isso, por que a impunidade segue sendo a tônica dos conflitos por terra no Brasil?

A estrutura fundiária e a concentração de terras têm heranças coloniais que continuam a produzir conflitos que se caracterizam por práticas de grilagem (a falsificação de documentos de propriedade para apropriação irregular), desmatamento e queimadas, que acarretam em perda da biodiversidade brasileira, além de ocasionarem também uma disputa violenta e desigual pela posse e controle das terras, que tem por maiores vítimas indígenas, quilombolas, posseiros e trabalhadores rurais sem-terra.

Se engana quem acredita na concepção dicotômica entre campo e cidade ou imagina que os desafios do campo são muito diferentes dos desafios da cidade. A volta da fome no país e a pandemia da Covid-19 demonstraram como o que é produzido no campo impacta a vida nos centros urbanos. Em ambos, o racismo dá o tom e os grupos mais atingidos são de indígenas e negros.

A produção do agro é voltada especialmente para a exportação de três produtos: a soja, o milho e a cana. Esses cultivos servirão de alimento para o gado ou para a produção de combustíveis. Há uma redução na área destinada ao cultivo de arroz, feijão e mandioca, principais alimentos da população brasileira. De acordo com o IBGE, entre 1988 e 2018, houve uma queda de 24,7% para 7,7% da área cultivada destinada à alimentação, o que demonstra que o agronegócio não toma a agricultura como fonte de alimentos para a população, mas como negócio, acúmulo e concentração de riqueza. O modelo do agronegócio nos impacta na fome e, ainda, como evidenciado em um dos textos publicados nessa seção especial, na produção de novas doenças.

Essa lógica antropocêntrica e capitalista, que promove o uso da terra como fonte inesgotável de recursos, é incapaz de conviver com a diferença e com o sentido da terra que não visa ao lucro. Devemos aos povos originários, aos povos que resistem no campo e são vítimas do descaso, do racismo, da violência e da impunidade, a preservação da biodiversidade brasileira.

O compilado de relatórios abaixo relacionados visa expor as fraturas do agronegócio em curso no campo, demonstrando como a exploração, o uso e o direito à terra seguem sendo um dos problemas fundamentais a serem enfrentados no Brasil. Foram utilizados nesse levantamento cinco estudos que exploram a questão do agronegócio e da fome, tema desse especial. Alguns dados, extraídos dos relatórios e apresentados abaixo, denunciam a falácia que está por trás do jargão “Agro é tech, agro é pop, agro é tudo”. Violência, fome, trabalho escravo, reprimarização da economia, pouca relevância no PIB, monoculturas, devastação ambiental e a utilização da política para privilegiar os interesses do grande capital latifundiário, são alguns elementos da face nada oculta do agronegócio.

Os estudos demonstram como um mesmo território ou grupo social vulnerabilizados enfrentam uma sobreposição de forças opressoras que atuam, simultaneamente, visando à expansão das fronteiras agrícolas, avançando sobre terras públicas, áreas protegidas e territórios tradicionais. O aumento da violência no campo tem relação com o desmonte dos órgãos ambientais e com a execução de políticas nocivas aos interesses de comunidades indígenas, quilombolas, assentados, posseiros, pequenos agricultores e trabalhadores rurais sem-terra. Nesse contexto, a reforma agrária segue sendo uma das mais urgentes políticas públicas que o Estado brasileiro deve executar para alterar a estrutura fundiária do campo, para a produção de alimentos para a população e para a redução das desigualdades sociais.

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