“A liberdade de ser infeliz, onde e como queira”: dos navios tumbeiros às periferias do Rio de Janeiro

Cristiane Teixeira da Silva Vicente, cria da Cidade de Deus, filha de Marizete e Luis, negra engajada na luta antirracista no SUS, enfermeira e doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/FIOCRUZ

Com essa frase de Luiz Gama, advogado negro e abolicionista, inicio com a discussão ancestral sobre a minha origem e chego nos dias de hoje, nos quais as pessoas negras ainda não possuem o direito de serem infelizes, onde, quando e como queiram. Ou seja, há a falta do mínimo: o direito de ter direitos, aqueles estabelecidos na Constituição Federal de 1988, que trata da construção cidadã e da sociedade do Brasil. No relatório da Organização das Nações Unidas, de 2016, foram divulgados os direitos mais violados no Brasil: à moradia, à saúde, ao trabalho, à renda, à juventude, às diferenças.

A história das favelas no Rio de Janeiro é reflexo das políticas discriminatórias, evidenciando a conexão entre o desenvolvimento urbano e as questões raciais. Atualmente, as favelas do Rio de Janeiro constituem uma parte intrínseca da paisagem urbana, abrigando uma parcela significativa da população carioca negra (pessoas pardas e pretas). Sua evolução e os desafios que enfrentam permanecem como temas de relevância para a compreensão da dinâmica racial, social e urbana da cidade.

A complexa relação entre a violência armada nos territórios, o racismo estrutural, a saúde e as condições de vida nas favelas desempenham um papel de extrema importância na dinâmica social contemporânea, por exemplo, no que se refere às barreiras de acesso e marginalização da população periférica. Essas questões sociais exigem uma análise profunda para compreender as implicações e desafios que afetam de maneira desproporcional as comunidades periféricas. Neste contexto, buscarei abordar o que é ser um corpo negro, privado de direitos em espaços favelizados conflagrados pela violência armada, além de refletir sobre como esse cenário afeta o bem viver nesses locais, através de uma breve viagem na formação histórica da cidade, marcada por processos de “limpeza” étnico-racial e cultural de um povo.

Começamos a nossa jornada remetendo à chegada de nossos ancestrais em navios negreiros, mais conhecidos como “tumbeiros”, responsáveis pelo tráfico transatlântico de pessoas escravizadas entre os séculos XVI e XIX, ou seja, quase 400 anos de transporte forçado de milhões de africanos para o país, com a submissão a condições desumanas de escravização. Essas embarcações eram projetadas para acomodar o maior número possível de pessoas, amontoadas em porões estreitos, expostas às doenças, à fome e ao tratamento brutal. A abolição veio, e com ela nenhum tipo de reparação histórica e/ou medida indenizatória para os afrodescendentes, pelo contrário, com a liberdade, não houve inserção dessa grande parcela da população na sociedade. Não havia saúde, educação, emprego, condições de moradia, acesso a bens que mitigassem as ações de exploração às quais essas populações foram submetidas por séculos.

Imagem: Acervo pessoal Cristiane Vicente

A origem das favelas marca um capítulo significativo na história do Brasil e está profundamente relacionada à influência das políticas higienistas e eugenistas que permearam o início do século XX. Nesse período, o Rio de Janeiro experimentava transformações sociais e urbanas significativas, com um aumento substancial da população nas áreas urbanas devido à migração do campo para a cidade, onde as políticas higienistas tinham o objetivo de melhorar as condições de saúde e saneamento nas cidades, mas negligenciavam os aspectos sociais e a igualdade. O planejamento urbano não considerou as necessidades das camadas mais vulnerabilizadas da sociedade. Em consonância, eram postas em prática as políticas eugenistas, que propagavam a ideia de “melhorar” a raça humana por meio da seleção, encorajando o controle da reprodução e a segregação de grupos considerados “descartáveis”, o que nos leva ao conceito de Necropolítica de Mbembe (2018), no qual o poder político do Estado determina quem vive e quem morre, ou seja, quais corpos têm menor valia e podem ser descartados. Na atualidade, tal conceito manifesta-se como política estatal de extermínio do povo negro nas favelas e periferias.

Essas políticas de extermínio contribuíram para a segregação espacial de populações marginalizadas, especialmente negras, em áreas precárias e desprovidas de serviços básicos, como água potável, eletricidade e saneamento básico. A combinação de políticas higienistas e eugenistas resultou no “apartheid” de populações marginalizadas, somada à escassez de políticas habitacionais eficazes, culminando na ocupação desordenada de encostas, morros e áreas desvalorizadas. O Estado segue controlando corpos negros quando permanece ausente de políticas públicas reparadoras e ações direcionadas à promoção de mobilidade social dessas pessoas. O descaso deve ser compreendido como política pública altamente eficaz no domínio de corpos.

Imagem: Acervo pessoal Cristiane Vicente

O racismo estrutural perpetua a desigualdade social e econômica, exacerbando as dificuldades encontradas nos espaços favelizados, compostos predominantemente por pessoas pretas e pardas. A discriminação racial se manifesta em diversas camadas, desde o acesso limitado à serviços básicos de qualidade até a maior exposição à violência policial. Segundo a definição da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (2009), a violência armada compreende o uso ou a ameaça do uso de armas para infligir ferimentos, mortes ou danos psicossociais, os quais prejudicam o desenvolvimento, afetando mais os países pobres ou medianamente ricos. Ela é expressa pela miséria, pela má distribuição de renda, pela exploração das(os) trabalhador( a)es, pela falta de condições mínimas para uma vida digna, pela ineficácia ou escassez de serviços de assistência social, saúde e educação. Nesse sentido, a privação de direitos tem efeito determinante sobre a violência, de modo que os sujeitos privados de direitos estão mais expostos aos riscos de sofrer ou de cometer violências.

Dessa forma, a violência, enquanto fenômeno vivenciado por grande parte da sociedade brasileira, encontra-se acirrada nas camadas menos favorecidas da população. Para Cano (2007), em algumas comunidades, a violência pode ser compreendida como uma ferramenta de construção de identificação dos “excluídos socialmente”. Existe uma socialização, uma pedagogia de violência, aprende-se e ensina-se a violência, não há como naturalizá-la. O município do Rio de Janeiro tem enfrentado, ao longo de um extenso período, uma preocupante interdependência entre a atividade do crime organizado e a escalada da violência armada. O aumento notório de grupos criminosos com estruturas cada vez mais organizadas tem exercido uma influência considerável na disseminação do uso de armas de fogo em conflitos do cotidiano.

Esta convergência entre os agentes do Estado e as facções criminosas, além da prontidão de acesso aos armamentos, têm resultado em índices alarmantes de violência, com impactos substanciais não apenas na esfera da segurança pública, mas também na qualidade de vida da população carioca, impactando nos serviços de saúde da cidade do Rio de Janeiro. Esse fenômeno ocorre majoritariamente em favelas conflagradas pela violência armada, promovida pela organização de narcotraficantes rivais que disputam territórios. Soma-se a isso a ofensiva policial como braço do Estado, interrompendo o acesso aos serviços básicos nas unidades de atenção à saúde, nas unidades de educação, de lazer e no comércio desses locais.

A violência armada em áreas predominantemente habitadas por pessoas negras é um sintoma alarmante do racismo sistêmico, contribuindo para o adoecimento psíquico e físico de corpos pardos e pretos nas favelas. Retomando a história no século XVI, Silva (2023) descreve o desejo de morrer e o desgosto pela vida sentidos pelos escravizados, sendo atribuídos pelos narradores colonos durante o processo de escravização às reações nostálgicas decorrentes da perda da liberdade e dos vínculos com a terra e o grupo social de origem, e ainda aos castigos excessivos impostos, o banzo. O termo “banzo” é uma palavra de origem africana que se refere a um profundo estado de tristeza e sofrimento psíquico, sendo resultado de uma história de opressão racial, transmitida de geração em geração. A escravização deixou cicatrizes psicológicas profundas, resultando em altas taxas de estresse, depressão e ansiedade nas comunidades afrodescendentes. E na contemporaneidade, a exposição constante à violência armada, dirigida a essas comunidades, agrava ainda mais os problemas de saúde mental. Além disso, o racismo estrutural, que se manifesta de várias maneiras, incluindo discriminação no sistema de saúde, na justiça criminal e no acesso a outros serviços, além da falta de representação e oportunidades iguais, também afetam a autoestima e a identidade cultural, desencadeando estresse emocional. O estudo do banzo e sua relação com o sofrimento psíquico contribui para uma compreensão mais profunda das complexidades da experiência humana diante de adversidades históricas e sociais, às quais o povo negro segue exposto, sofrendo com seu passado escravizado.

É preciso caracterizar o sofrimento psíquico diverso do transtorno mental. Pode-se postular como sofrimento psíquico tudo aquilo que atravessa as emoções, os processos de subjetividade e, em consequência, o cotidiano dos sujeitos, seja no ambiente doméstico, profissional, territorial, entre outros, levando-os a tentativas de produções de agenciamento (lidar com o adverso). Nesse percurso, é válido ratificar que toda forma de emancipação social, política e estrutural da população negra partiu da organização de movimentos sociais negros, sendo que uma delas, a criação da Política Nacional de Saúde da População Negra, foi um importante passo no reconhecimento da necessidade de enfrentar o racismo estrutural no setor de saúde, através da redução das disparidades, da valorização da cultura afro-brasileira e do respeito aos direitos humanos de todos os cidadãos. Ainda assim, há muito o que ser feito, à medida que a política existe há 14 anos e não foi implementada em todo o país.

Ainda que sejam poucas as linhas para descrever, os nossos passos permanecem vindo de longe, seguimos resistindo, mesmo com nossos direitos alijados, inclusive o de não ser permitido reconhecer o sofrimento psíquico como agravo à saúde da população negra periférica e nossos corpos sendo marcados e patologizados a todo tempo na saúde mental. Em síntese, a abordagem das problemáticas relacionadas ao sofrimento psíquico, alimentado pela violência e pelo racismo estrutural em áreas periféricas, clama por uma resposta imediata e abrangente da saúde pública.

O entrelaçamento dessas questões complexas impõe o uso de estratégias de sobrevivência que coloquem em destaque a promoção da saúde mental, a redução da violência armada e o enfrentamento ao racismo sistêmico, reconhecendo o potencial danoso do racismo como determinante social de saúde e a necessidade de cooperação de outros setores da sociedade (educação, assistência social, segurança pública, cultura, dentre outros), numa força tarefa conjunta. Além disso, é imperativo fomentar o acesso a serviços de saúde mental de qualidade, direcionar investimentos em educação e oportunidades econômicas nas áreas periféricas, direito à moradia digna, água potável, saneamento básico, segurança etc. A análise dessa temática é fundamental para promover conscientização e buscar soluções que visem à justiça social e à equidade.

Encerro este texto tentando traçar um caminho que me traga de volta, que faça a minha narrativa enquanto mulher negra, valorosa e expansiva, onde não disputo privilégios, mas anseio por direitos, inclusive o de ser feliz, onde, quando e como queira.

Imagem: Acervo pessoal Cristiane Vicente

REFERÊNCIAS:

ALMEIDA, S L. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Rio de janeiro. Revista Arte & Ensaios. 2018.

MISSE, M. Crime Organizado e Crime Comum no Rio de Janeiro: diferenças e afinidades. In. Revista Sociologia Política, Curitiba, v.19,n.40,p. 13-25,out.2011.

PNUD. Relatório sobre o Desenvolvimento Humano 2016. Desenvolvimento Humano para Todos. Estocolmo. HDR2016-2016-PT-ANGOLA. pdf (undp.org)_Acesso 12 Outubro de 2023.

SILVA, M. da S. e. O banzo, um conceito existencial: um afroperspectivismo filosófico do existir-negro. Griot : Revista de Filosofia, [S. l.], v. 17, n. 1, p. 48–60, 2018. DOI: 10.31977/grirfi.v17i1.809. Disponível em: https://www3.ufrb.edu.br/seer/index.php/griot/article/view/809. Acesso em: 15 out. 2023.

VICENTE, C.T.S. Violência urbana e “Acesso Mais Seguro”: estratégias dos profissionais para avaliação do risco e do acesso aos serviços de saúde. UFRJ/ Faculdade de Medicina, Instituto de Atenção Primária à Saúde São Francisco de Assis, 2022.

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