O enfrentamento à Covid-19 nas favelas em todo o Brasil reafirmou e recolocou em evidência uma demanda existente há anos junto aos movimentos sociais, organizações, grupos, ativistas e militantes atuantes desses espaços periféricos: o poder público e a implementação de suas ações e políticas públicas precisam repensar uma nova forma de governança que agregue a diversidade de atores da sociedade em geral e as(os) faveladas(os) especificamente.
No Rio de Janeiro venho acompanhando os caminhos trilhados no enfrentamento à Covid nas favelas, realizando ações coletivas e construindo propostas a partir de articulações mais amplas, contribuindo para mitigar os impactos dessa pandemia, sobretudo perante a população mais vulnerabilizada socialmente.
Durante quase um ano os problemas se agravaram, o Estado não consegue dar retornos efetivos e as respostas são tímidas e tardias.
O poder público, nos três níveis, foram e ainda estão inoperantes e demonstram grande incapacidade de diálogo, agindo com prepotência e ineficácia. Isso notabiliza claramente o quanto a gestão pública é lenta e frágil e não está preparada para atuar em casos de calamidades públicas e emergências sociais. Inclusive a desestruturação do Sistema Único de Saúde (SUS) tem feito grande diferença negativa no enfrentamento a essa pandemia. O SUS precisa ser valorizado como política pública de Estado e não ficar à deriva a cada governo. Precisamos retomar o SUS como ele foi pensado, articulado, debatido e construído.
Para que isso ocorra urge a derrubada, ou ao menos a suspensão emergencial, da Emenda Constitucional nº 95 que congelou os investimentos públicos por 20 anos. E assim o SUS possa ser colocado em prática em sua plenitude com especial atenção à saúde básica, mas também todos os seus níveis de complexidade, considerando o encadeamento desse atendimento nos diversos tipos de equipamentos da saúde, mas sobretudo um planejamento macroestrutural de enfrentamento à pandemia.
Por outro lado, os movimentos sociais de favelas se mobilizaram rapidamente, ainda em março de 2020, em cada localidade, para agir diretamente junto às populações com distribuição de cestas básicas e outros itens de primeira necessidade, mas também atuando concomitantemente em diversas escalas, inclusive nacionalmente, na construção de pautas em comum e estratégias de comunicação que atendessem às características das periferias.
As favelas possuem especificidades entre elas, mas sobretudo em relação ao restante da cidade por conta do seu contexto histórico. Em grande parte, criadas a partir da falta de política pública em habitação, foram se constituindo de forma orgânica por trabalhadores e trabalhadoras sem outra alternativa de moradia. Grande parte é formada por espaços reduzidos entre as casas, moradias com poucos cômodos, elevado número de pessoas por habitação, problemas permanentes no âmbito do saneamento básico: fornecimento de água, esgotamento sanitário e recolhimento de lixo.
Portanto, as favelas apresentam uma fragilidade estrutural muito maior que o restante da cidade, então precisamos pensar as ações de enfrentamento à Covid nas favelas atentos a essas especificidades. Não há os subsídios adequados para atender as orientações dadas à sociedade em geral e precisamos pensar por dentro das favelas. Isolamento social e lockdown nas Favelas devem ser pensados, considerando a falta de entretenimento em casa, acesso à internet, espaços inadequados nas residências, além de entender que a rua nas favelas é a extensão da casa.
Dessa forma, as orientações devem ter um olhar mais contextual para que se tenham o mínimo de sentido para as(os) moradoras(es) de favelas, principalmente no atual momento em que as aglomerações e a não utilização das máscaras está generalizada em toda a cidade, refletindo os discursos negacionistas de quem deveria estar preocupado com a logística e distribuição de vacinas.
Urge a consolidação de caminhos onde o diálogo da diversidade de atores sociais – principalmente organizações de base, poder público e universidades- possam juntos construir saídas estruturais e eficazes para a superação da pandemia, mas com o desprendimento para uma escuta ativa entre estes, valorizando vivências e conhecimentos diversos. No Rio de Janeiro tivemos essa experiência exitosa num grupo articulador com representações de Favelas, universidades e a Fiocruz que culminou no Plano de Enfrentamento à Covid-19 nas Favelas.
Outras articulações e ações de produção de conhecimento estão em andamento, como a produção da pesquisa “A Covid-19 como situação limite: experiências e memória histórica na produção de conhecimentos em saúde com favelas do Rio de Janeiro” realizada pela Fiocruz a partir do LTM – Laboratório Territorial de Manguinhos em três grandes favelas: Complexo do Alemão em parceria com o Instituto Raízes em Movimento, Manguinhos e Rocinha em parceria com o Jornal Fala Roça.
Essas e outras experiências demonstram serem possíveis outras formas de produzir e agir no enfrentamento à pandemia nas favelas, incluindo a diversidade de vozes que traduzam impactos, desejos, conhecimentos, técnicas e planejamento.
Neste momento que começa a ser disponibilizada, ainda muita timidamente, a vacina contra a Covid-19 e vemos mais uma etapa do mesmo despreparo e inoperância por parte do poder público, precisamos estar atentas(os) para incidirmos numa distribuição criteriosa que considere as(os) faveladas(os) e seu contexto histórico citado acima e sejam alçadas(os) a grupo prioritário.
Se ainda considerarmos: (a) o impacto econômico, sendo que grande parcela dessa população sobrevive do trabalho informal e intermitente, além de 2/3 da população brasileira desempregada sendo formada por negras(os), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); (b) a estrutura sanitária com a falta de esgotamento sanitário e a distribuição de água potável precária; (c) a mobilidade urbana disponível com transporte caótico, lotação diária e insuficiente para essa massa de trabalhadores que não tem a opção do isolamento social, tendo que buscar sua subsistência diariamente; (d) na educação: a suspensão das aulas ou a dificuldade de acompanhamento à distância, impondo outras dificuldades às mães trabalhadoras que são maioria na condução desses lares, além da alimentação que essas crianças tinham na escola e não foram substituída por apoio alimentar de forma regular; (e) a formação étnica da maioria das favelas onde 75,2% da camada com menor renda da população no Brasil são negras(os), segundo IBGE e que estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) demonstra que trabalhadoras(es) negras(os) tem 39% mais chance de morrer que brancas(os); (f) a renda e a cor/raça de quem já fez o teste para Covid-19, o percentual de óbitos por escolaridade, cor/raça e renda demonstra que a maioria da população favelada é a parcela mais vulnerável socialmente no enfrentamento à pandemia.¹
¹ Alerta sobre a responsabilidade pelas mortes evitáveis por Covid-19 (assinado por diversas entidades e organizado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor-Idec); IBGE, IPEA, Pnad Covid e Banco de internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG).
Portanto, são os determinantes sociais que definem, desde sempre, a exclusão ao acesso à saúde e qualidade de vida mínima que garanta a dignidade humana. Neste momento, a promoção da desigualdade crônica em nossa sociedade está sendo impulsionada no enfrentamento à pandemia, excluindo essa parcela da população do acesso à vacinação a partir do seu contexto histórico e social.
Precisamos impulsionar um chamamento público das(os) trabalhadoras(es) favelas(os) em conjunto com cientistas, sanitaristas, universidades, representações coletivas de trabalhadoras(es) e parte significativa da sociedade civil para pautar uma agenda pública, incidindo politicamente junto aos parlamentares e o executivo nos três níveis de poder e, se for possível, também judicialmente no STF por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para que trabalhadoras(es) faveladas(os) possam ser incluídos como grupo prioritário entre os critérios do Plano Nacional de Imunização (PNI), inclusive que este comece a ser digno do nome e cumpra seu papel de um plano nacional que oriente os entes federativos e seja eficiente, coerente e responsável socialmente no enfrentamento à Covid-19.