Meu nome é Vânia Rosa. Eu sempre começo dizendo pra justificar eu estar na luta hoje, o fato de eu ter tido trajetória de rua. Eu sou uma “ex-pessoa em situação de rua”. Por quase 15 anos eu fiquei em situação de rua. No meu caso, pela minha dependência química. Isso já foi tratado. Eu sou uma adicta em recuperação. Eu sou uma usuária do equipamentos de assistência do Sistema Único de Saúde (SUS), que é o CAPS AD, com origem lá em São João de Meriti.
Imagem: Acervo Projeto Rua
A rua tem várias questões, tem várias histórias que levam para aquele mesmo lugar, que é a calçada, a marquise e o papelão. O que leva à rua são várias questões, a minha foi por dependência química, a derrota e as perdas que tudo isso traz. Ao conseguir me livrar dessa dependência, eu também consegui sair da rua. Eu conheci vários grupos também que atendiam na rua, projetos, a sociedade civil organizada que ia ali e dava alguns encaminhamentos e começou a me mostrar caminhos via direitos humanos, via políticas públicas; e assim, efetivamente, eu consegui sair da rua.
Até que, em 2015, eu me encontro numa conferência de fortalecimento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Eu fui convidada para ser delegada; fui votada e fui como delegada representar o meu município São João de Meriti, já em recuperação da saída da rua e me apaixonei pela causa. Eu me apaixonei pelos caminhos que existem pra que isso efetivamente seja um resultado concreto. Sair da rua via política pública, conhecendo os seus direitos, lutando por eles e encontrando com eles.
Aí já na condição de militante, como ativista, eu conheço o Fórum Permanente Sobre Pessoa Adulta Em Situação de Rua Do Estado do Rio de Janeiro, onde hoje eu também sou uma das coordenadoras. E conheço os “bambas”, eu chamo de “bambas” da militância, os “bambas” da luta, as pessoas que eu acredito até hoje, que estão aí, e com elas eu fui aprendendo também a conhecer as leis e acreditando que é através disso mesmo, isso é o que faz realmente acontecer essa libertação da invisibilidade, da injustiça social, e tudo que faz essas pessoas estarem ali, como foi o meu caso que falei aqui. A saúde mental, os equipamentos que atendem e lutam por eles. Enfim, eu sou um resultado disso.
Mas quando eu venho nessa caminhada, eu também vou conhecer o outro lado da moeda; um poder público omisso, um poder público incompetente mesmo; covarde, porque tem tudo pra ser e não é, quando já falta tudo; quando a fome é mundial. E isso é histórico! Mas quando você se esbarra com pessoas, com gestores, com governos que impedem o combate à fome, embarreiram… Sendo que do outro lado do muro, você tem todo esse banquete, quando você ainda tem que lutar contra a fome. Aí as coisas ficam complicadas.
O poder público que devia ter sido o primeiro a ter mais sensibilidade, mais afeto, naquele momento em que o mundo parou para se solidarizar, aqui ele foi o primeiro a fechar suas portas. Tá bom, todo mundo teve que se isolar, o medo é grande. Eu acredito realmente que uma das formas ainda mais eficazes da gente se prevenir do Covid é o isolamento, a máscara. Mas, poxa, como é que o poder público não tinha estratégia? Se a gente sem nenhum poder, sem nenhum recurso, a gente fez loucuras… Os trabalhadores da saúde fazem a diferença, quiseram fazer. Mas não puderam. O que eles iam fazer se eles também não tinham os recursos. Eles não tinham condições, eles não tinham Equipamento de Proteção Individual (EPIs) para ir para as ruas, não tinham dinheiro. Os pagamentos de salário dos trabalhadores, naquele momento, estavam atrasados. Isso é uma coisa. Então não vou falar deles. Mas vou falar das secretarias, dos gestores, da prefeitura, do governo, que foi assim, cruel. Fecharam as portas.
Os obstáculos são muitos. Tem que ser derrubado o preconceito, a omissão do poder público, o racismo estrutural; combater essa falta de políticas públicas, fazer reconhecer os direitos desconhecidos, mas que estão na constituição, então são leis. Se não for pelo amor, tem que ser pela lei, pela luta. E aí, a cada dia eu me apaixono mais. E onde eu me apaixono mais é quando eu encontro com aquelas pessoas que eu estive junto com elas e que me receberam quando eu estava destruída como pessoa. Eles não quiseram saber se eu bebia cachaça, se eu fumava crack, o que eu era ou não era. Eles me recebiam, me acolhiam e dividiam comigo um cobertor, às vezes o único que eles tinham, num frio exorbitante. Eles dividiam comigo um pão, quando eles já tinham passado um dia inteiro com fome, mas eles eram capazes de dividir comigo. E eu conheci essas pessoas e também me apaixonei por elas. Mas eu me apaixono por elas todos os dias.
Por isso todos os dias eu vou com o projeto Juntando os Cacos Com Arte (JUCA), que é um projeto que eu também tive uma ideia assim, numa noite, numa madrugada de 2018 pra 2019. Eu pensava: “é difícil você ficar lutando só com bandeiras, com megafones e com esse poder público que é poderoso né? Tem que ter uma maneira de chegar a eles com alguma coisa que possa ser imediata e urgente. O que pode ser mais urgente do que fome e frio?”
Aí eu fundei o JUCA, o Juntando os Cacos com Arte, mas eu queria também que fosse através da arte, com os mosaicos, algo que tivesse próximo da realidade deles, porque são com materiais recicláveis e eles são, na maioria, catadores. E aí gerava ali a autoestima, gerava ali a renda, gerava ali a condição de eles poderem ter autonomia financeira e efetivamente então também sair da rua.
a pandemia, a gente teve que se reinventar, porque eu não tinha as oficinas, eu não tinha o meio de continuar a fazer as exposições e atender aquela galera ali, como a gente fez o ano inteiro de 2019. Mas eu sabia que eles estavam e continuavam ali e que mais do que nunca precisavam da gente com eles. A pandemia se oficializou em março, mas nós já sentíamos o impacto, porque eu sempre trabalhei nessa base. Lá na rua, na calçada, nas praças, a gente já estava sentindo que aqueles projetos que têm como perfil levar quentinhas, água, cobertores, esse atendimento imediato, eles se afastaram. Tiveram que fazer isso por questões de precaução, prevenção. Os medos de algo que a gente nunca viu, né! A pandemia de Covid é algo histórico, muito novo. E foi muito gritante, o mundo foi impactado com isso.
E aí eu pensei, como eu posso ajudar agora? Eu não posso fazer exposição, eu não posso juntar essa galera e aglomerar, correr riscos, levar riscos, mas eu preciso entrar. E cadê o pessoal que vem pra atender? Eles estão com fome, estão com frio. E agora?
Agora eu vou arregaçar as mangas. Aí comecei, peguei uma galera que também se disponibilizou a correr o risco, a gente ainda não tinha conhecimento exatamente do que era, como ainda não temos. Foram clareando algumas coisas. Aí eu pensei, vou fundar um coletivo, porque eu também não tinha condições estruturais e nem financeiras de atender com quentinhas todos os dias, levar lanche, etc. Eu não trabalhava com esse perfil, isso a gente fazia aleatoriamente, quando a gente ia nas rodas de conversa, mas eu não tinha as estruturas, muito menos a financeira.
Aqueles projetos que eram em rede, gente que eu já conhecia e já era conhecida que não podiam ir; eles repassavam para mim e para o meu grupo e a gente produzia, fazia e levava. E assim foi indo, aí foi crescendo.E por que que cresceu? Várias razões. Eles falavam que a pandemia ia acabar a qualquer momento, que ia se estabilizar e foi o contrário. Já está vindo aí acho que a décima onda, por aí! E aí a gente foi se reinventando, foi se adequando. Eu nunca via na minha vida, o número de pessoas na rua crescer assim, de um mês para o outro. O que a gente tinha em março de 2020, em média na rua, eram de 15 a 17 mil pessoas no município do Rio de Janeiro. Aquilo foi para 20, 22 mil pessoas em situação de rua, naquele auge, de uma forma louca.
Você estava tropeçando nessa galera na praça. Não tinha carro na rua, os estabelecimentos todos fechados. Você andava de uma quadra a outra e você já encontrava 200 pessoas ali, pedindo pelo amor de Deus uma água para beber, porque os comércios todos estavam fechados. Eles não tinham nem condições de pedir uma água, que aliás, muitas vezes é negada. E aí vários projetos, várias ONGs começaram a doar pra gente os insumos, outros doaram cobertor, outros água, outro a logística do transporte e a gente alinhava e todos os dias a gente estava indo.
Nos seis primeiros meses de nossas idas durante a pandemia, todos os dias eram 300, 200 águas; 200 quentinhas; era a roupa.
Quando a gente pensa que não, essa galera cresce com as pessoas das comunidades que desciam para a rua, porque não tinham alimento mais em casa: os trabalhadores informais, camelôs, etc. Eles não tinham mais para quem vender. Os catadores não tinham o que que catar. Aqueles que ainda conseguiam pagar um quartinho em alguma favela, alguma comunidade mais barata, eles estavam sendo expulsos porque não tinha mais como pagar seus aluguéis. E aí não descia um não, descia a família inteira, inclusive crianças, e a gente via tendas arrumadas na rua. Famílias, idosos, casais de idosos sem receber apoio algum. Aquela velha história, o outro tinha o bujão e não tinha o gás, o outro tinha o gás, mas não tinha o alimento. Tinha uma galera que cozinhava na rua, porque não tinha mais como cozinhar em casa, perdeu a casa, foram expulsas das suas comunidades porque não conseguiam pagar os aluguéis; outros tiveram que descer mesmo e abandonaram tudo, eles traziam algumas panelas, algumas coisas e cozinhavam na rua. Outro dia mesmo, eu fui servir um café da manhã ali na Avenida Primeiro de Março, daquele calçadão em frente ao fórum do Rio e, do outro lado do edifício-garagem, eram vários fogareiros e eles cozinhavam lá, alguns coletivamente.
Então a gente já começou a doar alimentos não perecíveis, cestas básicas, para eles. Depois, com o tempo, também outras frentes vieram e também essas mesmas pessoas começaram a ocupar espaços públicos e abandonados no centro da cidade. Ocupações que já tinham e outras que eles foram ocupando. O número de ocupações aumentou.
Imagem: Acervo Projeto Rua
A recepção deles à vacina está sendo maravilhosa, porque já estão conscientizados. No início da pandemia, tivemos que panfletar as informações sobre lavar as mãos, uso da máscara, distanciamento. Levamos produtos de higiene para eles e muita água, muito sabonete, detergente e muita máscara. E junto com esse material, levávamos informação, porque eles não tinham acesso à mídia. Alguns viam a gente chegar com máscaras, não tinham muito acesso à informação sobre a pandemia e estranhavam: “Por que o pessoal está chegando com máscara?”; e a gente tinha que estar ali informando o que estava acontecendo. Mas hoje não, hoje eles estão conscientizados e eles estão pedindo os Equipamento de Proteção Individual. Agora eles mesmos perguntam: “Trouxe máscara? Tem vacina?”. Eles mesmos falam, porque a rua fala para a rua.