A saúde como um direito historicamente negado à população negra: pensando a realidade da Baixada Fluminense

Daiane de Souza Mello, Psicóloga/ Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Servidora na Secretaria Municipal de Assistência Social de Nova Iguaçu. Coordenadora de Promoção de Igualdade Racial de Nova Iguaçu. E-mail: psidaianemello@gmail.com

Roberta Massot, Psicóloga, Gestalt-terapeuta e Sexóloga. Ativista e militante das causas raciais e de gênero. Email: robertamassotpsi@gmail.com

Vanessa da Silva Pereira, Psicóloga, Gestalt-terapeuta. Ativista na Promoção da Saúde Mental da População Negra da Baixada Fluminense. Especialista em Direitos Humanos / Servidora na Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Igualdade Racial de Belford Roxo. Email: psi.vanessaspereira@gmail.com

Uma breve contextualização sobre as heranças do passado escravocrata

Anos de sofrimento, escravização, preconceito e segregação por conta da raça afetaram profundamente a vida de pessoas negras em todo o mundo. No território da Baixada Fluminense, região metropolitana do Rio de Janeiro, não foi diferente. Esse período sombrio deixou marcas na história e na identidade dos negros, gerando traumas e mazelas transmitidas de geração em geração até os dias atuais. Anos de sofrimento, escravização, preconceito e segregação por conta da raça afetaram profundamente a vida de pessoas negras em todo o mundo.

No território da Baixada Fluminense, região metropolitana do Rio de Janeiro, não foi diferente. Esse período sombrio deixou marcas na história e na identidade dos negros, gerando traumas e mazelas transmitidas de geração em geração até os dias atuais.

Após o término da escravidão, a chamada “abolição” que deveria conceder a liberdade à população negra, não garantiu sua inclusão efetiva na sociedade e na economia. A falta de políticas para a promoção da igualdade racial, juntamente com a persistente ideia de que as pessoas negras eram inferiores, fez com que essa população continuasse à margem da sociedade.

As atitudes racistas contra indivíduos negros não são exceções, mas sim componentes arraigados de um sistema estrutural que favorece predominantemente o grupo étnico branco, contribuindo para a sustentação de uma dinâmica de privilégio associada à branquitude. A branquitude detém o poder econômico, a influência política, o acesso à educação, as melhores oportunidades de trabalho e os rendimentos mais elevados. Além disso, dentro da gama de privilégios acessados, desfruta de melhores condições de moradia e saneamento básico, lazer, cultura, maior segurança pública, alimentar e é frequentemente vista como o padrão de beleza e confiabilidade. Podemos concluir que essa estrutura racista coloca a pessoa branca em um patamar idealizado, com acesso às melhores condições de vida e tratamento, enquanto perpetua uma lógica social que retrata a pessoa negra como uma figura subalterna, inferiorizada e desfavorecida que não merece acesso ao bem-viver.

É a partir dessas perspectivas que a população negra herdou também o lugar da ausência de cuidado e do adoecimento crônico, inclusive, no que se refere à saúde mental. Vivendo na urgência da subsistência e sendo considerado um grupo racial desassistido de valor e importância, constantemente submetida a condições de vida, por vezes, desumanas. Sendo assim, a saúde aparece como um privilégio e não um direito garantido, na medida que não está acessível a todos de forma igualitária, devido à essa precarização de vidas negras. Aliás, será que “Vidas Negras Importam”? Não seria possível pensar a saúde da população negra sem revisitar e questionar toda essa conjuntura.

Baixada Fluminense: terra marcada por diversas vulnerabilidades sociais e violações de direitos

A Baixada Fluminense, região metropolitana do Rio de Janeiro, é um território majoritariamente negro. De acordo com o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 69% da população da Baixada Fluminense se declara preta ou parda.. As desigualdades históricas e estruturais se tornam notórias neste território que carrega profundas marcas do passado com um impacto significativo na vida das pessoas e na economia local. Composta por vários municípios, essa área enfrenta uma série de embates, que afetam a qualidade de vida e as oportunidades dos seus habitantes.

Historicamente tratadas como “cidades dormitórios”, as cidades da Baixada Fluminense seguem servindo mão de obra barata para as cidades mais elitizadas do Rio de Janeiro. Os desafios são muitos, como por exemplo, o pouco investimento em qualidade de vida e ensino, o escasso acesso à educação, lazer, cultura e conhecimento da própria história. Há ainda outros fatores, como: um grande índice de violência e uma vida precarizada que exige o trabalho árduo para a subsistência e, com isso, pouco tempo investido no cuidado com a saúde física e mental.

A implementação de políticas públicas que levem em conta as particularidades da região é fundamental para combater esses problemas. Fica aqui um questionamento fundamental: Afinal, existe um cenário favorável à promoção de saúde na Baixada Fluminense, principalmente, no que se refere a saúde da população negra?

Os impactos dessa estrutura social na saúde da população negra

A Baixada Fluminense é a região que se encontra ao norte do Estado do Rio de Janeiro, formado pelos municípios de: Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itaguaí, Japeri, Magé, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Paracambi, Queimados, São João de Meriti e Seropédica. Estudos apontam que a população negra dessa região do Rio de Janeiro apresenta os piores indicadores de saúde. De acordo com o estudo de Campos et al. (2018), a população negra na Baixada Fluminense enfrenta taxas mais altas de morbidade e mortalidade em comparação com a população branca. Isso pode ser atribuído a uma série de fatores, como a falta de acesso a cuidados preventivos, discriminação racial e as desigualdades socioeconômicas.

Além disso, também é possível observar na população negra maior incidência de doenças crônicas, como diabetes, hipertensão arterial e doenças cardiovasculares. Isso é resultado de fatores como a má alimentação, o sedentarismo e o tabagismo, que são mais prevalentes nessa população.

No que se refere à saúde mental, também é possível perceber disparidades agravadas pela herança de desigualdades profundas e históricas. Segundo o estudo de Silva et al. (2019), indivíduos negros enfrentam níveis mais elevados de estresse e prevalência aumentada de transtornos mentais em comparação com a população branca. Essas discrepâncias podem ser atribuídas a experiências de discriminação racial, desigualdades socioeconômicas e acesso limitado a serviços de saúde mental de qualidade. Para abordar essa questão de forma eficaz, é fundamental implementar políticas de saúde mental que sejam culturalmente sensíveis e que considerem os determinantes sociais da saúde, visando promover o bem-estar psicológico e a resiliência da população negra na Baixada Fluminense.

A realidade da mulher negra na Baixada Fluminense: o lugar do cuidado como um direito negado.

Não é possível abordar a saúde da população negra sem reconhecer a importância da saúde da mulher nesse contexto. Infelizmente, mesmo nos dias de hoje, os corpos das mulheres negras continuam a ser desvalorizados em comparação com os corpos brancos. Como já abordado pela artista Elza Soares: “A carne mais barata no mercado é a carne negra”. Completamos essa frase dizendo que esta é a carne que é menos vista e menos cuidada, mais violada e violentada.

De acordo com o estudo de Souza et al. (2019), as mulheres negras na Baixada Fluminense apresentam uma série de desigualdades em comparação com as mulheres brancas. Isso inclui maior incidência de doenças crônicas, taxas elevadas de mortalidade materna e obstétrica, segundo estatísticas, uma a cada quatro mulheres sofrem com violência no pré-natal e parto, sendo que 65,9% são negras, além de menor acesso a serviços de planejamento familiar e prevenção de infecções sexualmente transmissíveis.

Além da falta de recursos e a precarização da saúde pública, a discriminação racial e a falta de representatividade nas equipes tambémimpactam de forma significativa o acesso de mulheres negras na Baixada Fluminense aos espaços de cuidado.. Sendo assim, estratégias como a implementação diretivas e específicas para mulheres negras, o fortalecimento da atenção primária e a capacitação dos profissionais de saúde em competência cultural são passos importantes (Alves, 2020).

Em resumo, abordar as desigualdades na saúde da mulher negra na Baixada Fluminense requer um esforço coletivo de profissionais de saúde, gestores públicos e a sociedade em geral.

A ausência de informações e a não efetivação das políticas reparatórias como estratégia de apagamento da população negra.

Um dos contrapontos significativos na abordagem das questões de saúde da população negra na Baixada Fluminense é a carência de dados confiáveis, e que sejam abrangentes. A falta de informações detalhadas e atualizadas sobre a saúde dessas comunidades dificultam a avaliação precisa das necessidades e isso não apenas compromete a formulação de políticas eficazes, mas também dificulta a alocação adequada de recursos para áreas onde as diferenças em saúde são mais acentuadas.

Com a ausência de referências específicas fica difícil mensurar esses contrastes em questões que tangem a saúde, e compreender a extensão dos desafios enfrentados historicamente pela população negra da Baixada Fluminense. Esse “apagamento” perpetua a desigualdade e amplia as discrepâncias já existentes.

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), no Brasil, surgiu como uma iniciativa crucial para abordar essas assimetrias. Estabelecida em 2006, a PNSIPN tem a missão de enfrentar as profundas injustiças históricas e estruturais que impactam esse cenário. Ela visa proporcionar um acesso igualitário a serviços de saúde de qualidade e, ao mesmo tempo, promover a conscientização sobre questões de saúde específicas relacionadas à população negra.

Contudo, mesmo com objetivos explícitos, uma crítica justa recai sobre a não efetivação plena dessa política. Embora tenha havido progressos notáveis, a implementação prática dessa política ainda enfrenta obstáculos significativos. Um dos principais desafios reside na lacuna entre as diretrizes e a aplicação real no sistema de saúde. Frequentemente, recursos inadequados, falta de pessoal treinado e infraestrutura precária nos serviços de saúde que atendem as comunidades negras continuam a ser uma realidade. A sensibilização insuficiente dos profissionais de saúde em relação às questões específicas de saúde da população negra é outra crítica importante.

O racismo institucional e os preconceitos implícitos ainda afetam negativamente a qualidade do atendimento que as pessoas negras recebem. Para que a PNSIPN alcance seu potencial máximo, é crucial enfrentar essas questões críticas e garantir que as políticas se traduzem em ações efetivas. A efetivação dessa política pública é mais do que uma aspiração; é um passo necessário para alcançar um sistema de saúde verdadeiramente inclusivo e equitativo.

A importância de políticas públicas que pensem a população negra no contexto da Baixada Fluminense

Considerando a relação existente entre a noção de cidadania e as políticas públicas pensadas para a comunidade negra da Baixada Fluminense, destacamos a importância de que projetos sociais, educativos e profissionais sejam pensados para esta população. Hoje ainda temos déficits importantes nesse segmento de políticas públicas e colhemos números representativos dessa penumbra social, como também, a falta de representatividade.

A representatividade, palavra que está em voga atualmente, está alinhada à possibilidade de se enxergar em políticas públicas, espaços sociais e almejar um futuro digno. Quando observamos a falta dessa representatividade nas segmentações políticas e sociais, verificamos um número maior de jovens “alienados” de uma possibilidade de vida melhor. Vale ressaltar que quando trazemos a falta de representatividade para a Baixada Fluminense alinhamos este problema a um outro, também comum em grandes centros urbanos do Brasil, que é a evasão escolar e o número crescente de jovens que não trabalham e nem estudam. No momento em que existam políticas públicas que olhem para uma pessoa não somente como um indivíduo, mas sim como parte de um todo, observando-as em seu contexto, fica mais fácil enxergar as suas verdadeiras necessidades.

A saúde da população negra na Baixada Fluminense exige, antes de tudo, ações de enfrentamento das desigualdades estruturais. E esse é um processo complexo que deve passar pela via da humanização e contextualização desses corpos e a construção de iniciativas específicas que compreendam e atendam a essas realidades. Examinando esses desafios, fica um questionamento: Será que existem perspectivas de melhoria da saúde da população negra da Baixada Fluminense?

É possível observar uma urgência pela adoção de políticas de saúde pública sensíveis às questões raciais e que busquem promover a equidade no acesso aos serviços de saúde. Intervenções que visem fortalecer a infraestrutura de saúde na Baixada Fluminense, capacitando profissionais de saúde para a implementação de programas voltados à conscientização sobre questões raciais e as especificidades da saúde da população negra conforme sugerido como estratégia por diversos pesquisadores relevantes neste segmento de estudo (Alves, 2020).

Em suma, o que se objetivou destacar aqui é que a promoção da saúde da população negra na Baixada Fluminense requer uma abordagem multidisciplinar e integrada, não bastando envolver somente o setor de saúde, mas também as demais políticas públicas e segmentos da sociedade. Se a estrutura adoece e mata pessoas negras na Baixada Fluminense todos os dias, em todos os espaços, as estratégias de mudança deste cenário precisam pensar a transformação social e o bem-viver dessa comunidade.

REFERÊNCIAS:

ALVES, V. S. A saúde da população negra: desigualdades e políticas públicas. In: NOGUEIRA, P. (Org.). A saúde da população negra no Brasil: abordagens acadêmicas, políticas e da sociedade civil. Editora Fiocruz,2020.

BRASIL. IBGE. Censo Demográfico, 2022. Disponível em:. Acesso em 15 out.2023.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS. Brasília, DF, 2013.

CAMPOS, M. O. et al. Desigualdades raciais no acesso e uso dos serviços de saúde entre os municípios da Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, n. 10, p. 3295-3305, 2018.INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA); FÓRUM BRASILEIRODE SEGURANÇA PÚBLICA. Atlas da Violência 2020. Rio de Janeiro: IPEA, 2020.

SILVA, R. A. A.; NASCIMENTO, E. F. Desigualdades raciais em saúde mental: um estudo com jovens moradores de favelas da Baixada Fluminense. Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 22, 2019.

SOUZA, R. A.; GAMA, S. G. N. Desigualdades raciais na saúde das mulheres na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 35, n. 7, e00190217, 2019.

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