Áreas de desova: a expansão dos casos de desaparecimentos forçados na Baixada Fluminense / RJ

Giselle Florentino, Graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Estudo Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ) e Coordenadora Executiva da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJRacial).
E-mail: florentino.giselle@gmail.com

Fransérgio Goulart, Graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Coordenador Executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJRacial).
E-mail: fransergiogoulart@gmail.com

Este artigo trata do monitoramento sobre desaparecimentos força dos realizado pela Iniciativa Direito à Memória Justiça Racial (IDMJRacial)em áreas dominadas pelas milícias, na Baixada Fluminense/RJ. AIDMJRacial é a primeira organização social a sistematizar as áreas de cemitérios clandestinos na região, um território predominantemente negro, submetido a altos índices de violência e pobreza, localizado na área metropolitana do Rio de Janeiro.

Os métodos de desaparecimentos forçados de corpos foram utilizadosconstantemente como forma de terror do Estado em diferentestempos históricos e sob distintas condições. No Brasil, o aprisionamentoe a retirada forçosa de corpos de seus territórios perpassam toda aformação social e econômica do país, desde o tempo de colonização,passando pelos dramáticos anos de ditadura empresarial-militar, até o atual período dito democrático. Vale dizer que, nos últimos anos, aolongo da ofensiva conservadora e militarizada na política institucionalfederal e estadual, assistimos a uma reatualização dos métodos de desaparecimentosforçosos, agora sob a liderança de grupos de milíciasem territórios favelados e periféricos.

Não é possível falar sobre desaparecimentos forçados sem antes discutir os processos de violência de Estado, onde o próprio Estado é o principal realizador e violador de direitos sociais e humanos. Em nossa linha de análise, nos contrapomos ao mito socialmente construído sobre o papel do Estado representar a defesa dos interesses comuns de toda a população, já que nesse tipo de construção ideológica é retirado o caráter classista da formação da sociedade.

De acordo com os escritos de Lenin (2005), o Estado nasce a partir das necessidades internas das relações sociais, entretanto, é colocado como uma instância acima da estrutura social e distante de quaisquer interesses particulares. Logo, o Estado utiliza-se de aparelhos coercitivos para controlar a luta de classes através da personificação do exército e da polícia como uma “instituição de uma força pública” (Engels,2012).

O grau de violência na captura de negras e negros do continente africano e o processo de desumanização e, em seguida, a sua transformação em simples mercadorias dispostas no comércio ultramarino, sendo reféns dos anseios do capital, evidencia que o violento nascimento do capitalismo está totalmente associado à escravidão do povo negro, servindo como alavanca do processo de acumulação originária (Wiliams, 2012).

Por isso, entendemos que a ocorrência de desaparecimentos forçados não origina-se apenas no período da ditadura empresarial-militar na América Latina, e sim, ao longo de todo o brutal processo de colonização do continente, com processos dramáticos de humilhação esubordinação das colônias para a inserção subordinada dos países latino-americanos na fase industrial do capitalismo mundial.

Desaparecimentos forçados: da escravidão às milícias

Segundo o relatório da Voyages – The Trans-Atlantic Slave Trade Database8,12,5 milhões de africanos e africanas foram transportados para as Américas entre os séculos XVI e XIX (em quase 20 mil viagens), sendo64,6% formados por homens e 35,4% por mulheres. Ademais, 2,5milhões de pessoas morreram durante o translado. Para o Brasil, foram enviados 5,8 milhões de escravos através de embarcações portuguesas, sendo que o país foi o maior destino de escravos do tráfico negreiro nas Américas durante três séculos; cerca de 40% das pessoas retiradas forçosamente do continente africano vieram direto para o Brasil.

Um dos principais determinantes do período escravagista foi o caráter violento na captura do povo africano, viabilizado através de mecanismos de tortura, sequestro e dominação de corpos negros. Logo, a realização de desaparecimentos forçados não origina-se apenas no período da ditadura empresarial-militar na América Latina. E sim, ao longo de todo o brutal processo de colonização do continente, marcado pelo extermínio dos povos originários, subjugação dos povos africanos, pilhagem, espoliação e destruição de recursos naturais, entre outros processos dramáticos de humilhação e subordinação das colônias para inserção subordinada dos países latino-americanos na fase industrial do capitalismo mundial. Os métodos de desaparecimento forçado de corpos foram utilizados constantemente como forma de terror do Estado em diferentes tempos históricos e sob distintas condições.

Nos dramáticos anos de ditadura empresarial-militar na América Latina, o desaparecimento forçado de pessoas foi empregado como instrumento político de amplo cerceamento de liberdade e cassação de direitos políticos. O caráter de privação de liberdade através da captura, sequestro, tortura, mutilação e outros métodos torpes de desumanização e controle de corpos durante a vigência do período ditatorial brasileiro deixaram marcas latentes na memória social e na atuação política da sociedade até os dias atuais.

No Brasil, não há uma tipificação para os crimes de desaparecimento forçado, mesmo havendo inúmeras recomendações internacionais sobre a temática e principalmente sobre o grau de omissão do Estado acerca dos incontáveis casos de desaparecimentos de corpos que ocorrem em áreas periféricas e faveladas. Os casos que deveriam sertipificados como desaparecimento forçado são alocados de forma leviana na categoria de pessoas desaparecidas.

Apesar de o Brasil ter assinado, em 1994, a Convenção Interamericanade Desaparecimentos Forçados de Pessoas, a prática persiste no país, especialmente contra os mais pobres e negros. Entre 2003 e setembro de 2022 foram encontrados 12.140 cadáveres pelas Polícias no Rio de Janeiro, segundo o Instituto de Segurança Pública. Após a consolidação do poder das milícias, principalmente na Baixada Fluminense, identificamos o aumento das subnotificações e a diminuição dos registros oficiais de encontro de cadáver.

Ademais, a IDMJRacial possui uma leitura política sobre o que são as milícias, de maneira bem distinta de muitos pesquisadores do campo de segurança pública. Ancorada em seu cotidiano de atuação com as mais diversas faces das violações de Estado, a IDMJRacial defende um posicionamento, acima de tudo, racializado e classista sobre o que são as distintas frações de milícias que atuam em todo o território fluminense atualmente.

Para a IDMJRacial, as milícias não são grupos paramilitares, como é tradicionalmente discutido nos espaços acadêmicos. Afinal, a composição das grandes lideranças das milícias são originárias do próprio funcionalismo público, em sua maioria, são agentes ou ex-agentes de segurança pública. Não há uma relação paralela ao Estado, já que estão dentro da máquina pública, inclusive, utilizando-a para benefício próprio de seu grupo de milícia e/ou político. Ao contrário do que ocorre com as facções ligadas ao tráfico, algumas lideranças das milícias ocupam cargos de prestígio e poder dentro do Legislativo e Executivo, nacional e estadual. Ademais, as lideranças das milícias são, em sua grande maioria, homens brancos cis, oriundos das classes médias, militares e com grande influência política local. A milicialização é o atual projeto de segurança pública do Estado, vide seu modelo de negócio baseado em extorsão e sua relação articulada com as polícias para fortalecimento da consolidação de algumas frações de milícias. Por fim, existem diversas frações de milícias que disputam entre si devido à dinâmica de lucratividade e poder local. As milícias são diversas e não um todo homogêneo e monopolizado.

Ao receber informações e denúncias de moradoras e moradores da região, identificamos que as milícias, ao disputarem o domínio de territórios, utilizam os desaparecimentos forçados como um instrumento para demonstrar poder, não deixando evidência dos assassinatos, e como forma de terror, impedindo que ocorram denúncias e buscas pelos corpos. No geral, cerca de 17% dos cadáveres encontrados no estado do Rio de Janeiro são registrados nas áreas da Baixada Fluminense. A metodologia dos dados oficiais não engloba os casos de desaparecimentos forçados, dificultando ainda mais a possibilidade de quantificar o real número de pessoas vítimas da violência urbana que são executadas pelo Estado.

O crescimento de cemitérios clandestinos na Baixada Fluminense

O histórico de violência urbana na Baixada Fluminense é marcado pelo cotidiano desaparecimento de corpos, mortes que são ignoradas pelas estatísticas oficiais. O perfil das vítimas, em geral, é o de jovens, pretos e pardos, com baixa escolaridade, do sexo masculino e moradores de favelas e periferias. Entre 2003 até setembro de 2022 foram encontradas 754 ossadas no estado do Rio de Janeiro. No geral, cerca de20% das ossadas foram encontradas na Baixada Fluminense. As áreas com maior número de denúncias e depoimentos de desaparecimentos forçados são as áreas de controle de milícias, que de forma arbitrária e violenta encarceram, assassinam e desaparecem com os corpos dessas pessoas, os quais são descartados em cemitérios clandestinos ou rios para impedir a identificação das vítimas

A IDMJRacial produziu um mapeamento das áreas de desovas e cemitérios clandestinos na Baixada Fluminense para os anos de 2021 e2022, utilizando uma metodologia participativa com moradores e moradoras através de uma plataforma online de recebimento de denúncias e com informações sistematizadas das redes sociais dos diferentes territórios da região. Identificamos a existência de 77 cemitérios clandestinos na Baixada Fluminense em 2022, um aumento de quase 4ª vezes mais registros de áreas de desovas de corpos do que em 2021. São áreas que as milícias, as polícias, os grupos de extermínio, matadores e facções do tráfico utilizam para descartar os corpos após os assassinatos. Destes 77 cemitérios clandestinos, 32% estão localizados em Nova Iguaçu, 16% em Belford Roxo e 10% em Duque de Caxias. Os cemitérios clandestinos são desde terrenos baldios, áreas ermas, lixões, em certos pontos das linhas férreas, e até mesmo rios. Os rios são usados para o descarte de corpos, como os rios Sarapuí, Guandu e Botas. Encontramos11 pontos de rios que são utilizados como áreas de desova de corpos na Baixada Fluminense, como representado no mapa abaixo:

Figura 1- Mapa de Cemitérios Clandestinosna Baixada Fluminense/RJ – 2022

Fonte: IDMJRacial

Ademais, há registros recorrentes do uso da decapitação e do esquartejamento de pessoas como parte da estratégia e/ou métodos de atuação territorial baseados em produção de medo e terror pelas milícias. Os processos de mutilação de corpos ocorrem, na maioria das vezes, após a realização do sequestro/captura deste mesmo indivíduo. Uma sequência de violações que ocorre desde o sequestro, tortura, assassinato, desmembramento e ocultação do corpo. As milícias, na Baixada Fluminense, têm amplamente utilizado a decapitação e, posteriormente, a exposição de diversas partes de corpos desmembrados em espaços públicos para a construção de uma pedagogia do medo. E quando a vítima é mulher, seja ela cis ou trans, ainda é adicionada a violação sexual.

Mas, afinal, o que o Estado brasileiro está fazendo efetivamente para reduzir os casos de desaparecimentos forçados? A pergunta gera incômodo, pois há envolvimento do próprio Estado, por ação ou omissão. Por isso, a importância da construção de uma memória coletiva que sirva para a luta por reivindicação de mudanças estruturais históricas.

Fica evidente a necessidade de garantir a criação da tipificação da categoria desaparecimentos forçados para estimular a investigação e elucidação desses inúmeros casos de privação de liberdade, sobretudo, analisar as dinâmicas e relações entre as mais distintas tipificações de violência – decapitação, esquartejamento, encontro de cadáver, ossada, pessoas desaparecidas, sequestros e homicídios. O Estado deve ser responsabilizado por esse tipo de violação e garantir a reparação econômica e psicossocial para as vítimas e seus/suas familiares.

Os métodos de desaparecimentos forçados de corpos foram utilizados constantemente como forma de terror do Estado em diferentes tempos históricos e sob distintas condições, em que a América Latina foi uma das regiões onde a política de desaparecimento como método de terror se impôs com maior impacto e eficiência. A completa ausência da categorização sobre desaparecimentos forçados evidencia o nítido desinteresse político para as investigações desses casos.

Além da problemática das subnotificações, as metodologias utilizadas pelos órgãos oficiais não são disponibilizadas para livre acesso e os procedimentos metodológicos são alterados de acordo com os interesses do Estado para esconder a ineficiência da política de segurança pública, que não trata o enfrentamento do racismo institucional como uma questão estrutural. Diante do problema, realizar estudos e pesquisas sobre o tema é promover a construção de uma indignação coletiva que sirva para a luta por memória, justiça e verdade.

60% dos jovens de periferia
Sem antecedentes criminais
já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas
pela polícia, três são negras
Nas universidades brasileiras,
apenas 2% dos alunos são negros
A cada quatro horas, um jovem
negro morre violentamente em São Paulo
Aqui quem fala é Primo Preto,
mais um sobrevivente

(Racionais MC`s – Capítulo 4 Versículo 3)

Referências

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 3ºed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

INICIATIVA DIREITO À MEMÓRIA E JUSTIÇA RACIAL. Boletim IDMJR2022: Desaparecimentos Forçados – Áreas de desovas na Baixada Fluminense. Disponível em: https://dmjracial.com/2022/11/23/lancamento-boletim-desaparecimentos-forcados-areas-de-desovas-na-baixada-fluminense/. Acesso em 30 de julho de 2023.

LENIN, V.I. O estado e a democracia burguesa: O estado. Palestra proferida na Universidade Sverdilov, em julho de 1919. In: O Estado burguês e a revolução socialista. Instituto Latino-Americano de Estudos Sócio–econômicos. [s.l.]: Editoria Instituto José Luís e Rosa Sundermann, junho2005.

SLAVE VOYAGES. The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Disponível em: https://www.slavevoyages.org. Acesso em 30 de julho de 2023.

WILLIAMS, Eric. O comércio britânico e o comércio marítimo triangular. Capitalismo e escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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