Às mães foi negado até o direito à memória

Heitor Silva é professor, economista e doutor em Planejamento Urbano pela UFRJ.

Djefferson Amadeus é membro do projeto de Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis em Centros Urbanos da Cooperação Social da Fiocruz
Crédito: Djeff Amadeus, de seu celular, no dia do memorial

Memorial ás 28 vítimas do massacre do Jacarezinho

No dia 11 de maio de 2022, foi destruído o memorial em homenagem aos 28 mortos na chacina realizada pelos agentes policiais há um ano, no Jacarezinho, em 6 de maio de 2021.

A destruição do memorial ocorreu mesmo durante a decisão do STF na ADPF 635, conhecida como das Favelas, que estabeleceu limites às operações policiais. Como é sabido, o STF, acolhendo demanda dos movimentos sociais, determinou que o Governo do Estado do Rio de Janeiro apresentasse ao Supremo Tribunal Federal, em no máximo 90 dias, um plano destinado a conter a letalidade das operações policiais e controlar violações de direitos humanos pelas forças de segurança.

Atendendo à determinação do STF, o Governo do Estado do Rio de Janeiro editou o Decreto 480002 de Março de 2022. No entanto, por não atender as determinações contidas na ADPF das favelas, os movimentos sociais pediram que o Supremo Tribunal Federal desconsiderasse o plano apresentado pelo Governo do Rio, por ser um plano genérico, curto e, principalmente, por ter sido construído sem nenhum tipo de diálogo com a sociedade civil.

Este pleito ainda aguarda julgamento. A fim de trazer dados que possam balizar a decisão do STF, o Instituto de Defesa da População Negra juntamente com outros coletivos e movimentos sociais lançou o observatório Cidade Integrada que visa resguardar e fazer valer os direitos coletivos dos moradores da comunidade durante a execução desse projeto do governo. Além de ser um canal de denúncia de eventuais violações de direitos individuais, de domicílio, violações físicas, executados por esses agentes do Estado que estão no território”, explica o coordenador executivo do IDPN, Joel Luiz Costa.

Ainda segundo Joel Luiz Costa, “Nosso objetivo não é a responsabilização do tenente A ou sargento B, o policial é um instrumento menor na execução de uma política de poder e controle que é muito maior que ele. Nós queremos reforçar que esse tipo de ação, enquanto estratégia de segurança pública, além de ser um fracasso, é um projeto violento e violador com toda uma comunidade”.

Alguns dirão que o memorial era um acinte porque os mortos eram todos traficantes

Projetor do Observatório Cidade Integrada colocado na entrada do Jacarezinho, à noite Crédito: Djeff Amadeus

Mais importante do que as respostas são as perguntas, porque são estas que determinam as respostas. Com isso queremos dizer o seguinte: perguntar se as pesssoas tinham ou não anotações criminais, é colocar o debate num lugar equivocado com a intenção de justificar barbaridades.

Em termos comparativos, é como perguntar se a mulher estuprada estava de saia, roupa curta e etc. Esse tipo de pergunta não deve ser feita. Por quê? Porque só se presta a tentar legitimar a barbárie.

A lei estabelece as formas em que a polícia pode agir em legítima defesa pessoal ou de terceiros. Aqui um dos pontos pelos quais o debate deve partir. Mas, diante de tantas pessoas mortas, é impossível, mesmo para quem não estava lá na ocasião, acreditar que uma operação que matou 28 pessoas em uma manhã, teria localizado, estabelecido confronto e todos reagiram a abordagem policial. Nenhuma polícia do mundo tem este grau de acerto.

² https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/02/14/instituto-lanca-observatorio-cidade-integradano-jacarezinho.ghtml

³https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/02/14/instituto-l nca-observatorio-cidade-integradano-jacarezinho.ghtml

Outros episódios de destruição da memória de massacres

Amílcar Cabral diz que todo ato de resistência é um ato de cultura. Isto, a toda evidência, explica essa estratégia autoritária de destruir memórias. Assim, também em maio, mas no ano de 1989, foi destruído o monumento aos três operários mortos pelo Exército na invasão da CSN em greve. Canudos foi um arraial formado por pobres sem terras em torno da liderança mística de Antônio Conselheiro que rechaçou inacreditavelmente três expedições militares e só sucumbiu em outubro de 1897 à quarta, composta por um exército de mais de 4.000 homens, com canhões e metralhadoras, vindos de todos os Estados do Brasil. Por volta de 1910 Canudos ressurge, construída sobre as ruínas da anterior.

No início dos anos 50 o Governo brasileiro construiu uma represa que a cobriu por inteiro. Isso fica claro no depoimento de Yamilson Mendes, conhecedor de Canudos e bisneto de uma sobrevivente da guerra:

“Nem o fogo nem a água conseguiram apagar nossa história. Minha bisavó, que visitou o cemitério pouco antes de ficar submerso para sempre, dizia que seus mortos iam morrer duas vezes.” 4

Igreja em Canudos destruída a tiros de canhões havia sido construída pelos sem-terra

Os três atos mostram que os séculos passam, mas as forças de segurança continuam orientadas a negar o direito a memória seja de sem-terras, operários ou moradores de favelas, em síntese dos mais pobres.

Por que aos trabalhadores é negado o direito à memória?

A reflexão sobre a forma como as forças de segurança age neste país mostra que a classe trabalhadora sempre foi vítima de um terrorismo de estado que visava atemorizar e deixar sem reação os trabalhadores, sendo assim um perigo para os que comandam o Brasil. Imaginem os sem terras do Brasil saberem que 35 mil deserdados da terra (população de Canudos, um pouco menor do que o Jacarezinho) resistiram com sucesso a três expedições militares. Imaginem os operários saberem que nem uma ocupação militar com assassinato de operários dobrou o movimento sindical na CSN. Imaginem os jovens do Jacarezinho saberem que em um dia de fúria a polícia matou 28 e que o massacre foi interrompido pela atuação de líderes comunitários. São estes exemplos que aqueles que mantêm nosso povo amordaçado não podem aceitar.

É papel de todos aqueles que querem construir um Brasil para os brasileiros, e não para meia dúzia de magnatas, relembrar estes fatos e suas implicações, mas lembrar não basta, se faz necessário organizar a indignação do nosso povo.

4 Fonte: El País. Canudos, a cidade do fim do mundo. 04/02/2017. (Link: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/02/04/politica/1486239968_195098.html).

Da inconstitucional tentativa de criminalização dos organizadores

Como se não bastasse a “nova chacina” praticada pelo Estado, com a demolição e destruição do memorial construído, as organizações e movimentos sociais correm o risco de serem criminalizadas por conta de o Governador entender que o memorial constituía uma “apologia ao tráfico”, conforme declarações dadas publicamente por ele.

Importante registrar que até o presente momento, mesmo após seguidas tentativas, ainda não foi dado aos movimentos sociais acesso ao procedimento investigatório. Diante deste fato, os movimentos sociais organizados estão se mobilizando para que o direito à memória e liberdade de expressão sejam assegurados. Numa estrutura capitalista o judiciário é um estabilizador das expectativas do mercado, razão pela qual sabemos que não é desse lugar que a verdadeira emancipação advirá. Mas isso não significa que o judiciário não deva ser acionado estrategicamente. Pelo contrário. Por isso os movimentos sociais acionarão o poder judiciário. Assim que a petição for protocolada, traremos aqui, no Radar Covid-19 Favela, os desdobramentos dos pedidos com a esperança que o Supremo Tribunal Federal apure todas as responsabilidades.

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