Ato por memória e justiça em Paracambi: 1 ano da chacina do Jacarezinho

por Diogo Pimentel, Estudante de Ensino Médio/Técnico Integrado em Eletrotécnica do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro - Campus Paracambi (IFRJ/CPar) e Diretor Geral do Jornal INFORMA CPAR

Revisão de texto: Maria Fernanda Cardoso, Estudante de Ensino Médio/Técnico Integrado em Mecânica do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro - Campus Paracambi (IFRJ/CPar) e Redatora do Jornal INFORMA CPAR
Foto por: Diogo Pimentel

No dia 06 de maio de 2021, uma quinta-feira, ocorreu a Chacina do Jacarezinho, quando uma operação da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ) ocasionou a morte de 28 pessoas. Passado um ano da Chacina, familiares dos mortos, movimentos e organizações da sociedade continuam reivindicando justiça. Dentre esses movimentos está um pequeno grupo de estudantes e servidores(as) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro – Campus Paracambi, que realizou de forma independente da instituição, na sexta-feira 06 de maio de 2022, um ato por memória e justiça pelas vidas perdidas na Chacina.

O coletivo compreendia que essas mortes se deram de maneira totalmente arbitrária e injusta por ação direta das forças policiais em uma operação que violava abertamente a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635. A ADPF 635, estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), proíbe ou ao menos restringe as operações policiais em favelas no Estado do Rio de Janeiro durante a pandemia.

O ato por memória e justiça ocorreu diante das escadas de acesso ao IFRJ (Campus Paracambi) e à Faculdade de Educação Tecnológica do Estado do Rio de Janeiro (FAETERJ-Paracambi) e se deu em dois momentos, um pela manhã e outro na parte da tarde, aproveitando os horários de intervalo escolar. Em forma de rito, os(as) participantes se distribuíram em um semicírculo e evocaram os nomes dos mortos na chacina, informando também suas idades. Numa alternância que explicitava o contraste entre as vidas perdidas e os direitos previstos em leis e decretos, os(as) participantes leram também trechos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (Assembleia Geral das Nações Unidas, 1948) e da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, que foi assinada pelo Brasil em 06 de maio de 1952. A cada nome ou direito proclamado, um toque grave de caixa conduzido pela professora de música Camilla Moraes da Silva marcava o tempo.

Dentre os trechos recitados estavam o Artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz que

“Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.”

e a definição de genocídio presente na Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, que entende por genocídio “qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:

a) matar membros do grupo;

b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

c) submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;

d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio de grupo;

e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.”

O relato do público que estava próximo ao local no momento do ato revela que o mesmo foi impactante e necessário. Era com sentimento de revolta e tristeza que os(as) participantes proclamavam o nome dos mortos, dentre eles, o nome que mais alto gritaram foi o de Caio da Silva Figueiredo. Caio, que era um morador querido pela comunidade de Paracambi, conhecido por muitos, inclusive estudantes do campus,

também por ser irmão de uma ex aluna (Mariana Figueiredo), completaria 17 anos dia 31 de maio (e agora já estaria com 18) se não tivesse sua vida interrompida pela violência. Recentemente, ao saber que o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MP-RJ) arquivou as investigações das mortes sob a alegação de falta de provas, a família de Caio, dos demais mortos e todos que acompanham o caso acabaram tomados por profunda indignação. Foram divulgadas imagens que mostram policiais destruindo o memorial dos mortos criado por familiares e movimentos sociais na favela do Jacarezinho. Esperamos sinceramente que essas injustiças sejam reparadas e que o poder público pare de agir contra o povo. Abaixo, incluímos alguns depoimentos de estudantes e servidores que participaram dos atos:

Depoimento: Ana Vitória de Souza Conceição, 17, estudante do Ensino Médio/Técnico Integrado em Mecânica no IFRJ/CPar

“Completou-se um ano da trágica chacina do Jacarezinho, do massacre que ocorreu em 6 de maio de 2021, 28 pessoas mortas por conta da violência policial, famílias desoladas choram sua perda e o ato-memória citou o nome de cada um jovem morto. Foi muito forte e significativo participar, é importante dizer que quando esses casos de violência acontecem, a tentativa de apagamento se dá até mesmo pela lembrança, nos noticiários os jovens assassinados viram números, enquanto seus entes próximos gritam seu nome. É importante denunciar o racismo presente nessa operação que nem podia ter acontecido, diariamente vemos a violação e a falta de garantia dos direitos civis da população periférica.”

Depoimento: Thayêne Ignácio de Oliveira, 17, estudante do Ensino Médio/Técnico Integrado em Mecânica no IFRJ/CPar

“Participar do ato em memória às vítimas da chacina do jacarezinho foi de extrema importância para mostrar resistência e luta contra as operações em favelas, que só resultam na morte de pessoas pretas e pobres, e prejudica todos os moradores de comunidades, que não podem ir para o seu trabalho, para a escola, e, ainda quando ficam em casa, são atingidos por bala perdida, que, na verdade, já tem direção e endereço: corpos pretos e pobres. As vítimas tiveram os seus direitos violados, suas vidas covardemente ceifadas, e hoje suas famílias sofrem com a falta dos mesmos. A luta contra as operações em favelas precisa continuar.”

Depoimento: Adriana Werneck Russo Muniz, 44, Técnica em Assuntos Educacionais do IFRJ/Cpar

“Vinte e oito nomes próprios. Palavras, encarnadas em nossas vozes, vibravam no espaço-limite entre a morte (produzida) e a luta (inventada). Nomes próprios, citados um a um, ocupavam um espaço de passagens. Entre a escadaria e o bosque, bloqueavam o trânsitofluxo corrente (de carros, chegadas e partidas) ao mesmo tempo que produziam fluxos (de indignação, luto e ressonância). Experiência-limite – daquelas que não deveriam ser necessárias. Experiência-limite – daquelas que nos são impostas como luta pelas existências.”

Depoimento: Rodrigo de Moura e Cunha, 44, professor de História e coordenador do Núcleo de Apoio a Pessoas com Necessidades Específicas do IFRJ/CPar

“O que é um ato de memória? Ato político por excelência. Esforço comemorativo. Do verbo comemorar. Verbo que não se confunde com qualquer gesto celebrativo de evento ou feito passado. Comemorar é – como a etimologia nos ensina – tão somente, lembrar junto. E quase sempre, o dever de memória que mobiliza os sujeitos no presente refere-se a um passado sensível, doloroso e traumático. Esse esforço coletivo de lembrança equivale ao compromisso das gerações do presente e do futuro em prol do “nunca mais”. Dever de memória que se ergue em oposição a violência do tempo que joga os seres humanos para uma segunda morte: o esquecimento. Lembramos juntos por justiça e reparação. Lembramos juntos para suportar a dor de injustiças passadas. O direito à verdade, o direito à justiça e o direito à memória caminham juntos.

O massacre do Jacarezinho ocorreu em 6 de maio de 2021. 28 pessoas morreram numa ação planejada e executada por agentes armados à serviço do estado do Rio de Janeiro. A ação mais letal da história da capital fluminense. O memorial construído na comunidade do Jacarezinho para lembrar a chacina e servir como direito à memória para as famílias que perderam seus filhos foi destruído por agentes da mesma força policial. Não basta matar o corpo, é preciso também matar a memória. Contra essa segunda chacina nos levantamos e resistimos. Resistência para não deixar esquecer. Resistência para o “nunca mais”.

Depoimento: Pedro F. Grabois, 34, professor de Filosofia e coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas do IFRJ/CParacambi

“Acredito que toda a dor e sofrimento causados aos familiares e amigos dos que foram executados pela polícia, bem como a perda dessas vidas, são fatos que deveriam comover a sociedade como um todo. O sistema de justiça criminal e a política de “guerra às drogas” precisam acabar, pois são efetivamente a continuação do genocídio antinegro promovido pelo Estado brasileiro contra sua própria população. Dizer os

nomes, chorar os mortos, chamar a atenção da sociedade, se solidarizar com os familiares e amigos dos que morreram, questionar a atuação das autoridades, tudo isso é fundamental. Embora aqueles que partiram não vão mais voltar, precisamos seguir lutando e falando das mortes para tentar garantir vida para a população. Enquanto servidor público, cidadão e educador, acredito que precisamos discutir publicamente o sentido de uma política de segurança que se pretende pública e que está matando uma parte da população em nome da defesa da sociedade.”

Depoimento: João Pedro F. Costa, 18, estudante do Ensino Médio/ Técnico Integrado em Mecânica no IFRJ/Cpar

“Conheci Caio [da Silva Figueiredo] geralmente como amigos de nosso gênero se conhecem: jogando bola. Na época eu tinha apenas 14 e Caio algo próximo. Não éramos melhores amigos, mas devido à ânsia que eu tinha em ir para a praça brincar, jogar bola, nos víamos com frequência. Caio era um cara engraçado, não só pelas piadas que fazia, mas também pelo seu jeito. Tinha o apelido de “Pisca Pisca”, pois tinha um tique de piscar os olhos com frequência. Isso não parecia incomodá-lo. Enfim, os anos seguiram e acabamos nos distanciando, afinal, devido aos estudos, eu já não ia à rua com a mesma frequência. Aos 16 para 17 anos passei a sair, mas com outras finalidades… Nessa época o movimento do funk e da valorização da favela aumentou, com isso, passei a frequentar o Jacarezinho, assim como o Caio. Eu continuava a frequentar o Jacarezinho, mas Caio ia para lá com mais frequência, durante um tempo ficou até sumido da pista. Logo também descobri que Caio tinha feito um amigo, ex-estudante do IFRJ CPAR e morador de Paracambi que tinha parentes no Jacarezinho. Então a convivência de Caio com o Jaca se tornou mais íntima, nos últimos meses já não via Caio pela rua, mas devido à pandemia considerei isso normal. Mas enquanto dava aulas particulares, um de meus alunos chegou triste e perguntei o porquê de ele estar daquela forma. Ele contou que “o Digalo morreu”. Eu lhe disse “meus pêsames”, mas sinceramente não conhecia Caio por esse nome, e só depois de um tempo de desabafo de meu aluno que entendi que se tratava do Caio. Fiquei triste e todos nossos amigos em comum também. Caio era um garoto comum, que queria uma boa vida. Não o julgo. O retrato que fica para mim dele não é de “bandido” ou “usuário”, como parte da sociedade infelizmente o vê, e sim de amigo. Se todos, de fato, pagassem a conta da guerra às drogas não sobraria pedra sobre pedra na Zona Sul. Caio não era e não deve ser tratado diferente de qualquer outro adolescente.”

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