Carta da Periferia Brasileira de Letras à sociedade e à política brasileira

Periferia Brasileira de Letras
Imagem: Acervo PBL

“O que se nota é que ninguém gosta da favela, mas precisa dela”
Carolina Maria de Jesus

“A periferia unida no centro de todas as coisas”
Sérgio Vaz

Com esse conjunto de proposições, pensadas coletivamente e colocadas à mesa para o debate, apresentamos a Periferia Brasileira de Letras (PBL), e o trabalho desenvolvido até agora, no intuito de convidar outras pessoas, coletivos e organizações à reflexão sobre literatura, periferia e saúde como temáticas indissociáveis. Formada por uma rede de coletivos literários de atuação em periferias, a PBL surge em 2022, primeiramente em oito estados brasileiros – Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Brasília/Goiânia, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco e Ceará com o objetivo de reinvidicar políticas públicas. No horizonte, visualizamos ainda um árduo caminho, mas trabalhamos com a esperança de alavancar essas e outras pautas que possam vir à tona na esteira da política nacional.

AMPLIAÇÃO DO FAZER LITERÁRIO

Na importante Lei 13.696, não existe menção às periferias e favelas de centros urbanos brasileiros., Iisto reforça a invisibilidade desses imensos aglomerados urbanos. Diante das condições de excepcionalidade democrática que buscam criativamente a superação dos entraves, é importante materializar nas palavras quem ocupa lugar determinante na luta pela democratização do acesso à escrita e leitura. Além disso, no texto da Lei 13.696 não há o reconhecimento do amplo leque dos multíplos fazeres literários como também sujeito de direitos. Percebemos então que, embora seja um fenômeno cultural de forte expressão nos centros urbanos brasileiros, ainda há uma baixa representatividade dos segmentos literários periféricos nos espaços de interlocução com o Estado. Por isso, reivindicamos:

1) Incluir no texto do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) os territórios socioambientalmente vulnerabilizados de centros urbanos (comunidades, favelas, periferias, vilas, quebradas, etc), para que, reconhecendo a importância das experiências de resistência cultural periférica e marginal, através da literatura, o plano focalize nas possibilidades de ampliação da cidadania para os moradores desses territórios.

2) Incluir no PNLL, (Plano Nacional do Livro e Leitura), as seguintes expressões do fazer literário, contemplando-as nominalmente, inserindo-as como sujeitos de direitos: bibliotecas comunitárias, slams de poesia, saraus poéticos, batalhas de mc, rodas de rima, grupos teatrais de rua, museus voltados ao literário, editoras e selos alternativos, coletivos de literatura marginal, residências literárias, mutirões de cartoneira, rodas de leitura e contação de histórias oriundas das narrativas de tradição oral.

3) Recriar o Ministério da Cultura (MinC), desta vez incluindo a presença de uma pasta (secretaria) que observe e faça a interlocução com a produção cultural de territórios sócio ambientalmente vulnerabilizados em centros urbanos.

4) Reivindicar a cadeira nos conselhos (municipal, estadual e federal) de cultura, nos colegiados setoriais ligados ao livro, leitura, escrita, oralidades, literatura e bibliotecas e nas demais instâncias de participação social e política.

ORÇAMENTO

Há uma condição de iniquidade na distribuição de recursos para a cultura nas grandes capitais, onde se concentram investimentos nas regiões centrais, como também a alta concentração de aparelhos culturais, normalmente nos bairros com os maiores IDH e PIB. Por isso, reivindicamos:

5) Implementar orçamento participativo e a distribuição equânime derecursos para a cultura.

6) Desenvolver estudo que possa acontecer a cada biênio, com o qual sejapossível monitorar, nas 27 capitais brasileiras, a distribuição territorialde recursos da cultura, observando os dados que revelam tantosàs iniquidades assim como os eventuais cenários de mudança.

7) Criar programas que garantam orçamento a cada quatro anos paraas organizações comunitárias (especialmente aos coletivos literáriosatuantes em periferias) que desenvolvem ações de incentivo ao livro,leitura, escrita, bibliotecas, oralidade e a criação literária.

DIREITO À CIDADE

A rua, as praças, os meios de transporte são espaços de convivência, encontro, atuação, performance e realização das ações dos coletivos literários. Na pesquisa Coletivos Literários nas Periferias Brasileiras: um retrato (PBL-2022), ficou evidenciado como a violência urbana e a interdição do direito à cidade, são impeditivos para a segurança e a realização plena dos trabalhos dos coletivos literários. Por isso, reivindicamos:

8) Criar nos âmbitos municipais, estaduais e federais canais de interlocução dos coletivos literários com gestores públicos, a partir da pasta de cultura, para o diálogo e atendimento de demandas territoriais que estejam relacionadas aos trabalhos dos coletivos literários para o enfrentamento das iniquidades sociais.

9) Garantir a execução e proteção das ações de estímulo à literatura realizadas por coletivos literários em áreas públicas como: ruas, praças e meios de transporte.

PUBLICAÇÃO

É muito significativo o lugar que a publicação literária ocupa na vida dos coletivos literários. A circulação de zines, revistas e livretos, materiais autorais e artesanais, disseminadas material ou virtualmente, cria uma espécie de mercado editorial contra hegemônico. As editoras e selos independentes devem ser reconhecidas como grandes incentivadoras da publicação de uma literatura periférica e engajada. Por isso, reivindicamos:

10) Viabilizar a presença de livros de editoras e coletivos dos territórios periféricos nas escolas, por meio da compra pública de livros, da incorporação de obras literárias oriundas da literatura marginal e periférica no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e da inserção nas indicações das secretarias secretárias de educação.

11) Criar ações e programas de incentivo à produção literária voltadas à publicação de escritores oriundos das periferias brasileiras e de temáticas relacionadas a grupos historicamente minorizados.

12) Criar ações que viabilizem a impressão e publicação de livros produzidos por escritores e coletivos literários periféricos.

13) Criar ações como festivais e feiras literárias em periferias que estimulem a circulação das produções literárias.

14) Priorizar a cadeia do livro de editoras, revisores, ilustradores, diagramadores oriundos de territórios periféricos para execução das ações voltadas aos grupos citados nos itens 11, 12 e 13.

15) Criar ações de acessibilidade para que a produção literária periférica esteja disponível também para pessoas com deficiências.

ACESSO A BENS BÁSICOS DE SOBREVIVÊNCIA E INTERSETORIALIDADE

Mediante o quadro de:

a) violações impeditivas do coletivo nos locais onde atuam, por fatores de desemprego, violência policial, violência urbana e/ou lgbtqiafobia;

b) prática não reconhecida, porém exercida e estabelecida da literatura e outras artes nos transportes coletivos como área de atuação; e observando a intersetorialidade como providencial prática da Promoção da Saúde, reivindicamos:

16) Viabilizar políticas públicas transversais dos segmentos lítero-culturais periféricos com as pastas da Educação, Saúde, Assistência Social, Segurança Pública, Justiça e Direitos Humanos.

FORMAÇÃO

No Plano Nacional da Leitura e do Livro (PNLL), são previstas atividades de formação de mediadores de leitura. Os coletivos literários devem ser reconhecidos nominalmente e incluídos nessas atividades. Por isso, reivindicamos:

17) Incluir no PNLL os coletivos literários nas atividades de formação para mediação de leitura oferecidas pelo Estado. Um pouco mais sobre Literatura, Favela e Saúde

Literatura como Direito Humano

A luta pelos direitos humanos é fundamental para se buscar a transformação das periféricos em territórios saudáveis. A literatura, como vaticinou Antônio Cândido, pode e deve estar entre esses direitos fundamentais à experiência humana numa possibilidade emancipatória. E isso tem conexão com políticas públicas saudáveis.

O acesso à literatura como bem comum, inclusive como direito humano, em suas mais diversas expressões e fruições, é ainda diminuto, em termos de políticas públicas, a uma significativa parcela de nossa sociedade, principalmente para quem tem sua identidade social ligada ao seu local de moradia e sua representatividade associada à alcunha de periférico, à margem, pra quem mora na quebrada, numa favela, vila ou comunidade, é cerceado não só esse direito à literatura, como o reconhecimento de seus próprios saberes e fazeres literários. Contudo, na contramão das opressões e restrições impostas a quem ainda é alvo de violações de direitos, pela sua condição de moradia e por outros atravessamentos sociais, há um levante em curso, composto por uma rede de coletivos literários e, sim, periféricos: A Periferia Brasileira de Letras.

O que é a Periferia Brasileira de Letras?

Formada por uma rede de coletivos literários de atuação em periferias, a PBL surge em 2022, primeiramente em oito estados brasileiros, e visa sua expansão territorial em crescimento rizomático e cooperado, com o acréscimo de coletivos oriundos de bibliotecas comunitárias, saraus literários, grupos de teatro de rua, slams, círculos de leitura, batalhas de MC’s, residências literárias, selos editoriais populares, entre outros congêneres, para atuação solidária, comunitária e integrada na reivindicação de políticas públicas saudáveis. Seu objetivo é discutir, propor e disputar políticas públicas que ampliem nas populações periféricas, o acesso à escrita, à leitura e as oralidades tradicionais e contemporâneas.

Através da Cooperação Social da Fiocruz, esta rede, ainda em curso com seu apoio institucional, construiu metodologicamente um processo formativo e de escuta com outros coletivos, o que ampliou o leque de discussões e demandas necessárias à análise e reflexão sobre políticas públicas saudáveis. Define-se como políticas públicas saudáveis as estratégias, ações, investimentos, atitudes e movências articuladas e mediadas na participação popular, numa guinada emancipatória, resultado de mediação e intervenção político-sociocultural, implementadas a partir dos seguintes gradientes e ingredientes: identificação do problema, agenda política, formulação, tomada de decisão, monitoramento e avaliação, com o objetivo de melhorar a vida das populações periféricas.

Políticas Públicas e a PBL

Realizada remotamente, entre maio e setembro de 2022, teve início a 1ª formação do curso de territorialização de políticas públicas saudáveis da Periferia Brasileira de Letras, com o objetivo de colaborar efetivamente no estabelecimento de políticas eficazes, a partir de ações intersetoriais no campo do livro, leitura, escrita, literatura e bibliotecas, como normatizado pela Lei nº 13.696 (lei Castilho) que instituiu a Política Nacional de Leitura e Escrita.

Esta formação foi, antes de tudo, um exercício teórico e prático de reflexão, problematização e compreensão das experiências coletivas do fazer literatura em periferias, correlacionada com a territorialização de políticas públicas saudáveis, a partir do conceito de promoção da saúde. Temas como “vulnerabilidades socioambientais”, “determinantes sociais da saúde”, “sociedade, estado e poder”, “políticas públicas saudáveis” e “o campo do livro, leitura e literatura no Brasil” orientaram o debate, concentrando o debate na construção de uma política descentralizadora e pluralizadora de suas ações, e no investimento de uma leitura crítica e participativa, potencialmente voltada a políticas públicas para territórios periféricos e marginalizados.

Política Nacional, a Lei Castilho

A maior parte das temáticas presentes na Carta da PBL foram organizadas na referida Lei nº 13.696, de 12 de julho de 2018, que orientou um debate efervescente e concentrado na dinâmica, demandas e desafios vivenciados pelos territórios periféricos. Os debates implicaram em propostas de reconfiguração de suas diretrizes, como por exemplo, o vetor de inclusão dos fazeres literários das periferias que, ao produzirem obras e experiências gregárias, mobilizam seus moradores ao gozo e á fruição das diferentes formas de se fazer e experimentar a literatura. Em suma, a promoção da literatura como promoção da saúde a partir de coletivos literários organizados na rede Periferia Brasileira de Letras orienta os esforços de cooperação social para uma política pública que margeia o livro, a leitura e a literatura no limiar e na urgência do horizonte sociopolítico brasileiro atual.

Nesta carta, apresentamos demandas urgentes e necessárias com a propositura de serem executadas e direcionadas aos territórios periféricos para o enfrentamento das iniquidades sociais, em especial no campo da leitura e escrita. As orientações da Periferia Brasileira de Letras propõem ações intersetoriais que sublinham a promoção da literatura como cultivo de promoção da saúde.

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