Cocôzap: uma tecnologia social de geração cidadã de dados de saneamento básico no Complexo da Maré

Ana Carolina Fernandes Santana, indígena urbana, historiadora e fotógrafa Cacique José Urutau Guajajara, doutorando em linguística, Aldeia Maraká’nà
Foto: Logotipo Cocôzap

O CocôZap é um projeto de geração cidadã de dados, mapeamento, educação e mobilização comunitária do laboratório Data_Labe, fundado no ano de 2016, pela parceria inicial com Observatório de Favelas e Escola de Dados, que atua na promoção da democratização do conhecimento por meio da geração, análise e divulgação de dados com foco em raça, gênero e território a partir do Complexo da Maré – RJ. O Data_Labe é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos (Data_Labe, 2023). No ano de 2018, tornou-se uma associação autônoma com foco nos eixos de atuação: jornalismo; formação, monitoramento, geração cidadã de dados, justiça socioambiental e incidência política.

A iniciativa do projeto CocôZap surgiu em 2018, construída mediante as narrativas de quem passa por problemas relacionados ao saneamento, por meio do recebimento de denúncias dos moradores do Complexo da Maré pelo canal do WhatsApp do projeto. São mapeadas as violações do direito ao saneamento básico, as quais contemplam: abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo dos resíduos sólidos e das águas pluviais (águas provenientes das chuvas).

O recebimento das denúncias pelo número do CocôZap funciona da seguinte maneira: o morador envia a queixa para o número de WhatsApp, a equipe do Cocôzap entra em contato para entender a frequência do ocorrido e se foi feito contato com algum órgão/instituição; a queixa é registrada num banco de dados criptografado que segue a lei da LGPD¹, não entrando nenhum dado sensível do morador na planilha; a equipe de dados organiza o banco de dados e faz o upload no site do CocôZap das queixas existentes.

Além da coleta de dados, o CocôZap faz parceria com o projeto LUTeS (Lutas Urbanas, Tecnologia e Saneamento), do SOLTEC/UFRJ, Núcleo de Solidariedade Técnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, somando na promoção de atividades de educação ambiental crítica, na Escola Estadual Professor João Borges de Moraes, localizada na favela da Nova Holanda. E promove os Encontros de Saneamento da Maré, que são espaços de debate e articulação de diferentes atores do território com autoridades públicas em torno da temática do saneamento, e construiu a Carta de Saneamento da Maré, enquanto instrumento de incidência política.

A Maré é composta por dezesseis favelas. Segundo o Censo da Maré (2019), havia uma população de 139.037 moradores residentes, distribuídos em 47.758 domicílios, no ano de 2013. Sabemos que, socialmente, os territórios de favela e periferias são estereotipados e marginalizados, principalmente no que tange o acesso aos direitos básicos. Reivindicar a equidade de direitos e pautar políticas públicas é um movimento constante nas favelas. A geração cidadã de dados tem se tornado aliado nessa luta; com a consolidação de dados e diagnósticos, esse campo vem se moldando, se tornando mais palpável.

A área que compreende o Complexo conhecido como Maré surgiu na década de 1940. Foi construída sobre palafitas em uma região de mangue, sob condições inexistentes de esgotamento sanitário e direitos. O surgimento da Maré está diretamente ligado ao processo de remoção, desenvolvimento e expansão da cidade do Rio de Janeiro, processos iniciados no século XX, por meio das reformas urbanísticas que visavam a modernização. A construção da rodovia BR-101, atualmente conhecida como Avenida Brasil, inaugurada no ano de 1946, culminou num processo de migração local para a região, pela necessidade de mão-de-obra. Num momento posterior, houve também a migração da região Nordeste (Vieira, 2020).

Na década de 1980, com a implementação do Projeto Rio, iniciativa governamental para levar infraestrutura para algumas favelas da cidade, a Maré recebeu as primeiras obras de saneamento. Anteriormente, a rede coletora de esgoto e os ligamentos eram realizados de maneira manual pelos próprios moradores. Até essa época era muito comum a utilização do rola-rola, tecnologia desenvolvida pelos moradores em um barril de madeira adaptado, que possibilitava o transporte de água até as suas casas (Relatório CocôZap, 2021).

As associações de moradores, por intermédio da mobilização local, sempre foram muito importantes na história da Maré. As mulheres do território sempre estiveram na linha de frente nas tomadas de decisão, em busca da garantia dos seus direitos. Ainda na década de 1980, foi formada a Chapa Rosa, primeira chapa democrática composta só por mulheres. Cabe lembrar, que historicamente mulheres são as mais afetadas por doenças e pelo não acesso ao saneamento adequado. Essa mobilização trouxe a garantia e conquista de acesso à luz, água e esgoto.

Em 1994, o Complexo da Maré se tornou bairro, compondo a Área de Planejamento (AP3). Segundo o IBGE (2010), é o 9º bairro da cidade mais populoso. Sabe-se que os dados produzidos por instituições oficiais, em sua maioria, não retratam a realidade dos moradores de favela, seja pelas justificativas em torno das dificuldades de acesso aos locais para a coleta, pela presença do poder paralelo ou mesmo pela divergência na própria produção dos dados.

Em 2020, foi formulada a primeira Carta de Saneamento da Maré, em parceria com a Casa Fluminense e a Redes da Maré, a fim de pautar as demandas socioambientais para as eleições municipais. E também para compor a Agenda Rio 2030 da região metropolitana do Rio de Janeiro a partir da produção do plano de monitoramento popular sobre saneamento básico na Maré, através de dados compilados do CocôZap. Já o “Relatório do CocôZap 5.0 sistematizando dados e formulando políticas” (2021), apresentou o diagnóstico da pandemia da Covid-19 e o panorama de acesso à água, esgotamento sanitário, resíduos sólidos e o manejo das águas pluviais, a partir de dados disponíveis no Censo Populacional da Maré, de 2019.

A mobilização e articulação local foram fundamentais para a construção das queixas do CocôZap junto com os moradores e embaixadores do projeto. Em 2021, após muitas incertezas se instalarem com a pandemia da Covid-19, o projeto ganhou a colaboração de quatro embaixadores, moradores do complexo da Maré, responsáveis por atuar conjuntamente nas 16 favelas. Houve a divisão de quatro territórios para cada embaixador, que em quatro meses de projeto, por meio da busca ativa de escuta, conseguiram mapear 229 queixas, a fim de investigar a qualidade dos serviços de saneamento básico ofertados.

Das 229 queixas, foram consideradas 227 para os resultados, pois duas possuem imprecisão quanto às suas localizações. De 227 queixas, 122 estão relacionadas à categoria de esgoto, 72 à categoria de lixo, 23 pertencem à categoria drenagem e quatro estão relacionadas ao abastecimento de água. A partir dos resultados, foi possível compreender que nas favelas da Vila do Pinheiro, Baixa do Sapateiro, Morro do Timbau e Nova Maré há uma concentração maior no recebimento dessas queixas.

Os resultados também apontam que o maior problema existente quando falamos de saneamento básico na Maré, está na categoria esgoto que correspondem a 53,7% das queixas; seguidas de 34,4% de lixo; 10,1 de drenagem e 1,8% de abastecimento de água. O esgoto quando não tratado acarreta em doenças e impacta diretamente na saúde, sendo a disposição final do esgoto e uma questão de saúde para o ecossistema e para a população (ANA, 2023).

Assim, a promoção da saúde pública é afetada pelos efeitos do saneamento inadequado, ligados a alguns fatores possíveis e indesejáveis de ocorrerem em áreas urbanas e rurais, os quais podem ser minimizados ou eliminados com o uso apropriado de serviços de saneamento (FUNASA, 2023). Infelizmente, esse problema está longe de ser resolvido para os moradores do complexo da Maré, que também sofrem com as Doenças Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado (DRSAI), pela contaminação da água e esgoto, ocasionando em casos de diarreia, leptospirose e esquistossomose, que se não tratados devidamente podem levar a morte.

Nesse sentido, considerando os princípios de universalização e integralidade citados, e ainda destacando que o controle social, ou seja, a participação da sociedade na administração pública é, também, um dos princípios fundamentais estabelecidos pela Política Nacional de Saneamento Básico, o Cocôzap aposta na construção de planos participativos. A participação social é um dos pilares do fazer político democrático, mas tem sido desprezada em prol de narrativas unilaterais e pouco representativas (CocôZap, 2021).

O acesso à água é garantido pela Lei 11.445/2007, que prevê a universalização dos serviços de saneamento básico, mas a qualidade dessa água, muitas das vezes, é duvidosa, e o abastecimento também não é contínuo. Em 2020, foi aprovado o Novo Marco do Saneamento sob a Lei 14.026/2020, que mantém o objetivo de universalizar o acesso aos serviços de saneamento, porém, contando com a facilitação da entrada de empresas privadas, o que deixa ainda mais nebuloso o acesso ao saneamento nas favelas (CocôZap, 2021).

O não acesso ao saneamento básico adequado, às constantes violações que impedem o direito ao bem estar, produzidas pelas desigualdades sociorraciais, são desdobramentos do racismo ambiental, impactando diretamente os corpos negros, periféricos e marginalizados.

O racismo ambiental acontece quando pessoas são expostas à vulnerabilidade e riscos ambientais por sua raça, cor e/ou etnia (Alier, 2007). Os eventos relacionados às mudanças climáticas, tais como altas temperaturas, alagamentos e enchentes, estão se tornando mais frequentes e as favelas são as mais prejudicadas pelo não planejamento e pela ausência de planos de ação governamentais.

A produção de dados em favelas possibilita a formulação de políticas públicas descentralizadas, o combate ao racismo ambiental e pauta a justiça climática e racial, pois parte das reais necessidades de quem sofre com as violações do Estado, fortalecendo as causas e reivindicações locais. O intuito maior que rege essa iniciativa é materializar – por meio de vivências, reflexões e construção de metodologias – ações integradas e abrangentes que ampliem os campos de possibilidades sociais e de direitos dos moradores de favelas e periferias (Redes da Maré, 2019).

Bibliografia

A Maré em 12 Tempos / organizado por Antônio Carlos Pinto Vieira, Cláudia Rose Ribeiro da Silva, Luiz Antônio de Oliveira. – Rio de Janeiro: Ceasm: Espirógrafo, 2020.176 p.;23cm.

Carta de Saneamento da Maré: Complexo da Maré / organização Casa Fluminense, Data_Labe, Redes da Maré, — 1.ed. — Rio de Janeiro : Associação Casa Fluminense, 2021. — (Coleção agendas locais 2030; 1).

ALIER, Joan Martinez. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração / Joan Martínez Alier; [tradutor Maurício Waldman] – 2. ed.,4º reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2007.

Relatório CocôZap 5.0 sistematizando dados e formulando políticas. Casa Fluminense, Heinrich Böll Stiftung. Dezembro: 2021.

Censo Populacional Redes da Maré. Redes da Maré. 2019.

Brasil, 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD): https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm

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