Como comer, viver e ter moradia, na pandemia da Covid-19?

Elaine Marcelina, moradora de Campo Grande, coordenadora do Centro de Cultura e Memória Ancestral Kasa Marcelina. Mestre em Histó¬ria, escritora e militante do Movimento Negro Unificado (MNU).
Imagem: Acervo Centro de Cultura e Memória Ancestral Kasa Marcelina

Sou Elaine Marcelina, hoje coor­deno o Centro de Cultura e Me­mória Ancestral Kasa da Mar­celina, onde todas as ações são feitas dentro da minha casa, onde moramos eu e minha filha, Anna Gomes. Na Kasa da Marce­lina um dos projetos é a Ação Doe Amor, onde distribuo alimen­tos para moradores em situação de rua, em Campo Grande, de 15 em 15 dias. A pandemia também impactou nesta ação. Distribuo cestas básicas na Zona Oeste do Rio de Janeiro tem mais de seis anos, distribuindo 3 ou 4 cestas mensais, vindas das pessoas que iam até minha casa receber um passe ou consulta com meu Preto Ve­lho, Pai Joaquim de Angola. Herdei esta parte espiritual da umbanda, dos meus avós. Sou rezadeira, como meu avô materno era.

Na Kasa de Marcelina, temos ainda a Biblioteca Comunitária Beatriz Mo­reira Costa – Mãe Beata de Iemanjá, onde jovens crianças e adultos po­dem vir pegar livros para ler, seguindo os protocolos de segurança. Esta biblioteca foi rebatizada este ano, pois se chamava Biblioteca Comuni­tária Carolina Maria de Jesus. Como Carolina Maria de Jesus ganhou um título da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pensei: temos muitas e muitos de nossos mais velhos para colocar em lugar de desta­que, que esta sociedade não colocou, aí rebatizei. Em fevereiro deste ano abri na minha sala a Livraria Oju Obá. Oju Obá é uma palavra em Yoruba, que significa “os olhos do Rei”. Criei esta livraria pela necessidade que minha filha e minha sócia na livraria tinham para ganhar dinheiro. Ela me disse “mãe, quero trabalhar”. Imediatamente pensei: “quer ser mi­nha sócia na livraria?” Ela topou, e com isso nasceu uma empreendedora aos 16 anos de idade.

Imagem: Acervo Centro de Cultura e Memória Ancestral Kasa Marcelina

Voltando ao cerne da questão, como comer, viver e ter moradia, na pan­demia da Covid-19?

Eu fui gestada embaixo da Marquise do Vavau, na Rua Antenor Corrêa, conhecida como Vacaria, localizada, em Senador Camará, Vila Aliança,

favela da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Minha mãe foi posta na rua por meu avô, por ter engravidado aos 16 anos. Quando nasci, voltei para a marquise. Nasci em 6 de setembro de 1973. Meu umbigo melou. Minha tia mais velha Edneia pediu meu avô para deixar minha mãe entrar em casa comigo e ele deixou. Quando minha mãe foi agradecer, ele disse: “vem uma dona aí levar essa criança, filha minha não tem filho sem marido”. Minha mãe disse: “tá bom, papai”, virou e saiu. Foi até a es­tação de Senador Camará, pegou o trem e foi para Engenho de Dentro. Procurou uma antiga “patroa”, Dona Catarina, que nos acolheu e quan­do Dona Catarina me levou ao médico, o médico disse: “não temos mais nada há fazer, pois o umbigo melou”. Minha mãe fez promessa para São Sebastião e durante 7 anos fui aos pés do Santo, juntamente com minha mãe, em uma igreja em Bangu. Hoje tenho 48 anos, estou viva para con­tar esta história e minha mãe partiu em maio deste ano.

Minha mãe passou fome para eu e meus irmãos não passarmos, éramos 5: eu, Luciene, Wilson, Eudes e Priscila. E no ano passado, em maio de 2020, perdemos o meu irmão Wilson, morreu de Covid. Viveu nas ruas e muitos anos no sistema prisional. O corpo negro não tem descanso nem na morte, ele estava com a tornozeleira do sistema prisional quando morreu. Como estava tudo fechado pela pandemia da Covid-19, a funerária não poderia retirar a tornozeleira; O enterro dele foi adiado por um dia, pois tivemos que acionar o Ministério Público, para acionar a Secretaria Estadual de Administração Penitenciária (SEAP) para retirar a tornozeleira e poder­mos nos despedir do meu irmão, ainda que com caixão fechado.

Sempre me perguntam: Elaine, por que você faz esse trabalho de en­trega de alimentos a moradores em situação de rua? Por que entrega cestas básicas, já que você é professora, escritora, mestre em História, roteirista e dramaturga?

A resposta é simples: fui gestada embaixo de uma marquise. Fui forjada por mulheres negras, como minha avó Natalina que me criou até meus 10 anos de idade. Nosso café era transparente, mas tomávamos café da ma­nhã e da tarde. Passamos muitas dificuldades, mas minha tia Carmem chegava da maternidade Praça XV e trazia uma bananada para mim, Lu­ciene, Wilson e minha prima Silvia Helena, filha da minha tia Carmem.

Minha tia Sheila, mesmo sendo um pouco mais velha do que eu, me matri­culou na escola. Lembro do penteado até hoje. Sempre brinco com ela, “a cada coisa que escrevo, a culpa é sua que me matriculou na escola”. Quando fiz dez anos, fui morar de volta com minha mãe, pois havia nascido meu irmão Eudes, primeiro filho do meu padrasto Ednei, que conviveu 42 anos com mi­nha mãe. Depois veio a Priscila. Me sinto mãe deles, pois cuidava deles para minha mãe trabalhar nas “casas de família”. Coloco entre aspas, pois minha mãe e outras mulheres negras moradoras de favela deixavam suas famílias em casa para trabalhar na casa de outras famílias.

No ano passado, só fui duas vezes levar comida aos moradores em situ­ação de rua, pois eu tenho comorbidade e ninguém tinha noção de como ficaria esta pandemia. Trabalho na área de saúde, sou Agente de Comba­te às Endemias do Ministério da Saúde: os famosos “mata-mosquitos do Rio de Janeiro”. Hoje estou readaptada, cedida ao Estado do Rio de Janei­ro e ao Município do Rio de Janeiro, trabalhando no setor Administrativo de um Posto de Saúde da CAP 5.2, Campo Grande. Após ser vacinada, no início deste ano, retomei o trabalho e voltei à minha missão. Foi quando vi o caos instalado.

Em Campo Grande, eu levo comida em três ou quatro locais: passarela da rodoviária de Campo Grande; em frente ao Bradesco; Igreja nossa Senhora do Desterro; Caixa Econômica, em frente ao Rocha Faria. Foi aí que segurei o choro, muitas mulheres, crianças, mulheres grávidas, idosos. A popula­ção em situação de rua aumentou, pois o desemprego aumentou, as pesso­as não conseguem pagar aluguel e vão para a rua. Ainda têm os que ficam no BRT de Campo Grande, que estava desativado. Todos e todas dizem tia: “Deus vai te abençoar”. Sou do Candomblé, sou rezadeira e cultuo também a umbanda herdada por meus avós. Dói quando chega uma pessoa e diz “tia, ainda tem quentinha?”. Eu digo com lágrimas nos olhos: “acabou, mas eu volto”. A fome na pandemia afetou as favelas, as pessoas em situação de vulnerabilidade, moradores em situação de rua ou não.

Eu tenho muitos alunos e alunas de Cursos de Escrita, que ministro onli­ne, desde a pandemia, mas uma alu­na, que prefiro não identificá-la… foi minha aluna na Faculdade Simon­sen, em 2019. Ela é diarista, trabalha como faxineira e no fim de 2019, ela matriculou a filha no curso de Di­reito. Quando entrou a pandemia de 2020, ninguém a chamava para trabalhar. A filha trancou a matrícula e, no final de 2020, eu comprei a mesa dela de seis cadeiras. Ela recebia as pessoas; eu e mais cinco alunas que ajudo a escreverem livros. Ela precisou vender praticamente tudo. Agora, após a vacina, ela voltou a trabalhar nas mesmas casas. Mas quem cobre este impacto do que ela perdeu? Como fica o tão sonhado curso de direito da filha dela? Ela tem moradia, mas como faz para pôr comida na mesa com o gás no preço que está? Fica difícil. Outra crueldade, no meu ponto de vista, foi a forma de acesso ao auxílio emergen­cial. Muitas pessoas não têm acesso à internet, nem tem telefone. Tinham filas imensas na Caixa Econômica, dava dó de ver.

Imagem: Acervo Centro de Cultura e Memória Ancestral Kasa Marcelina

Então, eu nasci na favela, sou uma intelectual preta, escritora da perife­ria e luto para combater a fome neste país, no caso, aqui na minha trin­cheira, Zona Oeste do Rio de Janeiro, porque eu não passei fome, mas minha mãe passou. Escrever sobre tudo isso dói, dilacera a alma, mas topei rascunhar estas linhas, para ver como podemos gritar para este mundo caduco e cruel que a fome mata! Que morar, sobreviver e comer no Rio de Janeiro, tem que se ter coragem! Coragem para lutar, levantar todos os dias e não esmorecer.

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