Quem lê esse artigo agora, talvez não saiba que bairros como a Vila Kennedy, Paciência, Cidade de Deus e Aliança foram construídos nos anos 60 com verba dos Estados Unidos – através do projeto “Aliança Para o Progresso” (daí, o nome da Vila Aliança) -, com o intuito de remover moradores de favelas das zonas Sul e Norte: como as do Morro do Pasmado e Favela da Praia do Pinto, na Zona Sul; e Ramos e Favela do Esqueleto na Zona Norte. Inclusive, a Favela do Esqueleto tinha este nome, em razão de ter sido uma invasão aos esqueletos dos prédios em construção, do campus da antiga UEG – Universidade do Estado da Guanabara, hoje, UERJ, no Maracanã.
Me lembro de quando era criança, que as famílias aqui da Vila Kennedy recebiam uma ajuda social do projeto “Aliança para o Progresso”, que trazia em seu bojo o programa “Alimentos para o Mundo” para ajudar no problema de desnutrição, enfrentado por uma grande parte dos moradores do bairro, principalmente, as crianças. Esta ajuda consistia principalmente na distribuição de um leite em pó enriquecido, que chamávamos “Leite Americano” e uma farinha láctea, chamada Farinha “EUBRA”, em alusão ao convênio entre EU (Estados Unidos) e BRA (Brasil), que trazia uma logomarca com a esfinge de um aperto de mãos entre uma mão com manga de paletó da bandeira dos Estados Unidos e a outra mão, com a bandeira do Brasil. Essa ajuda era distribuída, prioritariamente, às grávidas, lactantes e mães de crianças menores de idade, tendo preferência as que estivessem sob maior risco alimentar.
Dizia o governo, na edição de 04/08/1964, do jornal “A NOITE”, que “100 gramas de Farinha EUBRA, equivalem a um bife, um ovo e um copo de leite, que perfarão 426 calorias”¹. Era o ano de 1964, um período de ditadura militar recém-implantada no Brasil e era preciso mostrar algum traço de generosidade com o povo pobre, que, entre outras coisas, havia sido removido de suas casas à força, para evitar qualquer tipo de aversão ao novo regime. Daí, o “trabalho social”, criado e mantido pelo governo. No entanto, esta bondade ocasional, durou apenas até 1974, quando o “Leite Americano” e a Farinha “EUBRA” deixaram de ser entregues às famílias, que então, voltaram à condição de penúria.
Imagem: Acervo Pessoal Rodrigo Carapa
Porém, era preciso manter o povo naquele estado de necessidade, mas criar algo que substituísse a perda do leite e da farinha. Assim, surgiu o “Ticket do Leite”, que era distribuído aos mais pobres, no entanto, este projeto era bem mais abrangente, pois se estendeu a todo o estado do Rio de Janeiro. Mas, como “tudo que é bom, dura pouco”, logo foi descoberto o desvio dos recursos do programa e ele foi extinto sob a alegação de combater a corrupção, ao invés de se punir os culpados e seguir com a distribuição.
Veio então a Constituição de 1989, a “Constituição Cidadã”, que criou e ampliou direitos sociais e com isso, vieram programas como Vale Gás, Cheque Cidadão, Bolsa Escola, e PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), com abrangência estadual e nacional, mas todo este esforço ainda não foi suficiente para erradicar a fome.
Imagem: Acervo Pessoal Rodrigo Carapa
Em 16/09/2014, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), publicou relatório que excluiu o Brasil do “Mapa da Fome”², por conta dos programas sociais, implantados pelos governos de Lula e Dilma, que foram eleitos desde 2002 e neste período consolidaram o “Estado de Bem-estar Social”, através da criação do MESA – Ministério Especial da Segurança Alimentar, que produziu programas como o “Fome Zero”, e o “Bolsa Família” e de ações de ascensão social com geração de empregos, através de investimentos públicos e os acessos aos ensinos médio e superior pelos mais pobres.
Em 2016, o país começa um processo – inicialmente imperceptível – de retorno ao “Mapa da Fome”, com a aprovação do “Teto de Gastos”, a retirada sistemática de direitos sociais e trabalhistas. A consequência foi a acentuação da fome, da miséria e do desemprego. E como se isso fosse pouco, veio a Pandemia da Covid-19, que grifou ainda mais o flagelo do povo pobre brasileiro, mas, ao mesmo tempo, obrigou a criação de redes de proteção solidária e combate à fome, onde organizações, movimentos e até partidos políticos, além de pessoas comuns, organizaram mutirões de distribuições de castas de alimentos e produtos de limpeza e higiene, apelidadas de “Cestas Básicas”.
Porém, um detalhe curioso me chamou a atenção: Nestas redes de proteção, por incrível que pareça, não identifico Igrejas, como patrocinadoras ou colaboradoras destas ações solidárias, apesar de muitos de seus fiéis serem beneficiários das distribuições. Talvez, porque sua fonte de renda – Dízimos e ofertórios – tenham sofrido bruscas quedas, em função do aumento assustador do desemprego e dos minúsculos índices da recolocação, no mercado de trabalho.
No começo, ainda havia um entusiasmo significativo, que, somado à solidariedade humana, ao fato de muitas pessoas ainda estarem empregadas e as recém-desempregadas ainda estarem recebendo algum benefício, como o Seguro Desemprego e a expectativa de que a pandemia durasse menos tempo, o volume de cooperação era bastante significativo, mas, como todos estes indicadores superaram as expectativas, de forma negativa, a ajuda começou a se tornar escassa, ao ponto de hoje vermos voluntários de outrora se tornarem beneficiários das próprias campanhas que ajudaram a organizar e executar.
Em 2020, o Parlamento Nacional (Câmara e Senado) aprovou um auxílio emergencial de R$ 600,00 (Seiscentos Reais) (³), que, em princípio, teria a duração de 6 meses e que ajudou muitas famílias a ter um mínimo de capacidade de sustento, porém, ao fim das parcelas, o poder executivo avaliou que R$150,00 (Cento e Cinquenta Reais), seria um valor razoável para a manutenção das famílias e também promoveu cortes, no cadastro anterior, reduzindo a quantidade de beneficiários do auxílio.
No fim da minha reflexão, observo que da Farinha “EUBRA”, a “Cesta Básica”, o povo pobre – da Vila Kennedy ao Brasil – tem sido vítima do assistencialismo, da covardia e do ódio de uma elite que não suporta nos ver ter alguma ascensão social e agem sempre no sentido de nos colocar em posição de penúria, para aceitar a miséria, com resignação, em nome de um Deus, das igrejas que frequentam, mas que nada tem a ver com o Deus bondoso e generoso que aprendemos a amar e respeitar.