Da “Farinha Eubra” À Cesta Básica

Raimundo Carrapa, Movimento Negro Unificado Favelas, Vila Kennedy
Imagem: Acervo Pessoal Rodrigo Carapa

Quem lê esse artigo agora, talvez não saiba que bairros como a Vila Kennedy, Paciên­cia, Cidade de Deus e Aliança foram cons­truídos nos anos 60 com verba dos Estados Unidos – através do projeto “Aliança Para o Progresso” (daí, o nome da Vila Alian­ça) -, com o intuito de remover moradores de favelas das zonas Sul e Norte: como as do Morro do Pasmado e Favela da Praia do Pinto, na Zona Sul; e Ramos e Favela do Esqueleto na Zona Norte. Inclusive, a Fa­vela do Esqueleto tinha este nome, em ra­zão de ter sido uma invasão aos esquele­tos dos prédios em construção, do campus da antiga UEG – Universidade do Estado da Guanabara, hoje, UERJ, no Maracanã.

Me lembro de quando era criança, que as famílias aqui da Vila Kenne­dy recebiam uma ajuda social do projeto “Aliança para o Progresso”, que trazia em seu bojo o programa “Alimentos para o Mundo” para ajudar no problema de desnutrição, enfrentado por uma grande parte dos morado­res do bairro, principalmente, as crianças. Esta ajuda consistia principal­mente na distribuição de um leite em pó enriquecido, que chamávamos “Leite Americano” e uma farinha láctea, chamada Farinha “EUBRA”, em alusão ao convênio entre EU (Estados Unidos) e BRA (Brasil), que trazia uma logomarca com a esfinge de um aperto de mãos entre uma mão com manga de paletó da bandeira dos Estados Unidos e a outra mão, com a bandeira do Brasil. Essa ajuda era distribuída, prioritariamente, às grávi­das, lactantes e mães de crianças menores de idade, tendo preferência as que estivessem sob maior risco alimentar.

Dizia o governo, na edição de 04/08/1964, do jornal “A NOITE”, que “100 gramas de Farinha EUBRA, equivalem a um bife, um ovo e um copo de lei­te, que perfarão 426 calorias”¹. Era o ano de 1964, um período de ditadu­ra militar recém-implantada no Brasil e era preciso mostrar algum traço de generosidade com o povo pobre, que, entre outras coisas, havia sido removido de suas casas à força, para evitar qualquer tipo de aversão ao novo regime. Daí, o “trabalho social”, criado e mantido pelo governo. No entanto, esta bondade ocasional, durou apenas até 1974, quando o “Leite Americano” e a Farinha “EUBRA” deixaram de ser entregues às famílias, que então, voltaram à condição de penúria.

Imagem: Acervo Pessoal Rodrigo Carapa

Porém, era preciso manter o povo naquele esta­do de necessidade, mas criar algo que substitu­ísse a perda do leite e da farinha. Assim, surgiu o “Ticket do Leite”, que era distribuído aos mais pobres, no entanto, este projeto era bem mais abrangente, pois se estendeu a todo o estado do Rio de Janeiro. Mas, como “tudo que é bom, dura pouco”, logo foi descoberto o desvio dos recur­sos do programa e ele foi extinto sob a alegação de combater a corrupção, ao invés de se punir os culpados e seguir com a distribuição.

Veio então a Constituição de 1989, a “Constituição Cidadã”, que criou e ampliou direitos sociais e com isso, vieram programas como Vale Gás, Cheque Cidadão, Bolsa Escola, e PETI (Programa de Erradicação do Traba­lho Infantil), com abrangência estadual e nacional, mas todo este esforço ainda não foi suficiente para erradicar a fome.

¹ Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=348970_06&pagfis=12116&url=http://memoria.bn.br/docreader#

Imagem: Acervo Pessoal Rodrigo Carapa

Em 16/09/2014, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), publicou relatório que excluiu o Brasil do “Mapa da Fome”², por conta dos programas sociais, implantados pelos governos de Lula e Dilma, que foram eleitos desde 2002 e neste período consolidaram o “Estado de Bem-estar Social”, através da criação do MESA – Ministério Especial da Segurança Alimentar, que produziu programas como o “Fome Zero”, e o “Bolsa Família” e de ações de ascensão social com geração de empregos, através de investimentos públicos e os acessos aos ensinos médio e superior pelos mais pobres.

Em 2016, o país começa um proces­so – inicialmente imperceptível – de retorno ao “Mapa da Fome”, com a aprovação do “Teto de Gastos”, a retirada sistemática de direitos so­ciais e trabalhistas. A consequência foi a acentuação da fome, da misé­ria e do desemprego. E como se isso fosse pouco, veio a Pandemia da Covid-19, que grifou ainda mais o flagelo do povo pobre brasileiro, mas, ao mesmo tempo, obrigou a criação de redes de proteção solidária e combate à fome, onde organizações, mo­vimentos e até partidos políticos, além de pessoas comuns, organizaram mutirões de distribuições de castas de alimentos e produtos de limpeza e higiene, apelidadas de “Cestas Básicas”.

Porém, um detalhe curioso me chamou a atenção: Nestas redes de prote­ção, por incrível que pareça, não identifico Igrejas, como patrocinadoras ou colaboradoras destas ações solidárias, apesar de muitos de seus fiéis serem beneficiários das distribuições. Talvez, porque sua fonte de renda – Dízimos e ofertórios – tenham sofrido bruscas quedas, em função do aumento assustador do desemprego e dos minúsculos índices da recolocação, no mercado de trabalho.

² Fonte: http://mds.gov.br/area-de-imprensa/noticias/2014/setembro/brasil-sai-do-mapa-da-fome-das-nacoes-unidas-segundo-fao

No começo, ainda havia um entusiasmo significativo, que, somado à soli­dariedade humana, ao fato de muitas pessoas ainda estarem empregadas e as recém-desempregadas ainda estarem recebendo algum benefício, como o Seguro Desemprego e a expectativa de que a pandemia durasse menos tempo, o volume de cooperação era bastante significativo, mas, como todos estes indicadores superaram as expectativas, de forma nega­tiva, a ajuda começou a se tornar escassa, ao ponto de hoje vermos volun­tários de outrora se tornarem beneficiários das próprias campanhas que ajudaram a organizar e executar.

Em 2020, o Parlamento Nacional (Câmara e Senado) aprovou um auxí­lio emergencial de R$ 600,00 (Seiscentos Reais) (³), que, em princípio, te­ria a duração de 6 meses e que ajudou muitas famílias a ter um mínimo de capacidade de sustento, porém, ao fim das parcelas, o poder executivo avaliou que R$150,00 (Cento e Cinquenta Reais), seria um valor razoável para a manutenção das famílias e também promoveu cortes, no cadastro anterior, reduzindo a quantidade de beneficiários do auxílio.

No fim da minha reflexão, observo que da Farinha “EUBRA”, a “Cesta Bá­sica”, o povo pobre – da Vila Kennedy ao Brasil – tem sido vítima do as­sistencialismo, da covardia e do ódio de uma elite que não suporta nos ver ter alguma ascensão social e agem sempre no sentido de nos colocar em posição de penúria, para aceitar a miséria, com resignação, em nome de um Deus, das igrejas que frequentam, mas que nada tem a ver com o Deus bondoso e generoso que aprendemos a amar e respeitar.

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