Desigualdades e impactos da pandemia na população LGBTQIA+ favelada

Gilmara Cunha, diretora Executiva do Grupo Conexão G
Imagem: Acervo pessoal Gilmara Cunha

O Grupo Conexão G de Cidadania LGBT é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos fundada por um grupo de jovens em março de 2006, em Nova Holanda, no Complexo de Favelas Maré, com o objetivo de minimizar preconceitos vividos pelas pessoas LGBTQI+ nas favelas da cidade do Rio de Janeiro, em uma atuação integrada e abrangente, com foco nos direitos humanos, promoção da saúde, cultura, educação, desenvolvimento territorial, segurança pública (incursões policiais em territórios de favelas). Além disso, temos como meta prioritária a atuação com foco na promoção de empregabilidade, prevenção de violências, exploração sexual e o tráfico de pessoas, a exploração do trabalho infantil, e outros temas transversais que afetam diretamente os corpos e as experiências das pessoas LGBTQI+ nestes espaços. Por fim, a questão do respeito à diversidade sexual e a visibilidade da resistência e das vulnerabilidades a que está população está sujeita de acordo com a estrutura racista, patriarcal.

Desde sua fundação, o grupo tem servido como referência para o debate sobre tais temas em favelas e periferias, sendo responsável pela organização de diversos seminários, encontros, eventos, workshops e da primeira Parada LGBTQI+ realizada em um território de favela no planeta, evento este ocorrido em 2012 e de recorrência anual.

Nossas intervenções são realizadas a partir de princípios da interseccionalidade, ou seja, buscamos realizar o cruzamento de marcadores sociais da diferença que são utilizadas para a produção das desigualdades sociais e ampliação da assimetrias históricas e sociais, tendo na raça/etnia, orientação sexual e identidade de gênero, de origem ou classe social suas ferramentas de diferenciação e subalternização nestes territórios.

Dado o panorama histórico e cultural da sociedade brasileira, pensar os contextos de favelas necessariamente implicar pensar formas correlatas de violação de direitos, violências e exclusão estrutural, sobretudo quando o mundo enfrenta e atravessa um cenário inimaginável cujas proporções têm sido devastadoras para diversos países. Diante dessa conjuntura, o panorama decorrente da pandemia tem atingido de maneira particular as favelas, sobretudo pelo desinteresse do poder público em ofertar soluções e alternativas de qualidade para mitigar os impactos do novo coronavírus nestes territórios. Diante da histórica política de ausência do estado, as organizações e movimentos sociais têm se mobilizado a fim de construir estratégias eficazes e criativas para combater os efeitos do vírus. Uma dessas ações é justamente o combate à fome, que tem se intensificado em nossas favelas.

Imagem: Acervo pessoal Gilmara Cunha

A partir das ações que realizamos durante a pandemia conseguimos identificar nesse processo que a desigualdade social ficou mais evidenciada na população favelada, em especial ao segmento LGBTQI+, que se apresenta como ainda mais vulnerável.

Diante disto, o Grupo Conexão G entendeu ser fundamental produzir um levantamento do perfil sociodemográfico das pessoas atendidas pela organização durante a pandemia da Covid-19. Assim, construímos formulário de cadastro que nos permitiram mapear o perfil de vulnerabilidades de nossa população e, como resultado, alguns dados corroboram nossa experiência empírica cotidiana, uma vez que traduziram em números aquilo que vínhamos acompanhando todos esses anos. Aqui vale ressaltar que a favela e suas organizações e movimentos sociais vêm produzindo epistemologias. É isso que nós do Grupo Conexão G estamos produzindo, ou seja, dados e conhecimento a partir das narrativas dos próprios moradores(as). Se não querem que nós sejamos vistos(as), nós teremos que continuar a forjar e incidir nas nossas construções como ferramenta de luta e de disputa de narrativas e dados contra o Estado cristão, heteronormativo, patriarcal, classista e racista.

Mesmo com todas as dificuldades para agir no atual contexto de pandemia, conseguimos alcançar o número proposto de distribuição de insumos alimentícios (cestas básicas); alcançamos cerca de 4.000 pessoas com nossas estratégias de comunicação que incluíram lives, postagens nas redes sociais e mensagens em grupos de Whatsapp e para as pessoas cadastradas em nosso banco de dados -estas atuando como replicadoras dos conteúdos.

Diversos veículos de imprensa noticiaram os impactos específicos da pandemia nas populações mais empobrecidas, mulheres (cisgênero) e negras. Contudo, não vimos ou vimos poucos dados específicos sobre a situação das pessoas LGBTQI+ negras e racializadas ou, ainda, sobre a situação de pessoas faveladas.

Algumas dinâmicas que pudemos cartografar através de nosso trabalho e dos levantamentos que fizemos, foi que grande parcela das pessoas por nós cadastradas, não estão trabalhando formalmente; outras perderam o emprego durante a pandemia; e uma fração menor segue trabalhando, ainda que em condições precárias. Também pudemos observar que temos quase a totalidade das pessoas trans em situação de não empregabilidade e/ou trabalhando no mercando informal, como por exemplo, em serviços domésticos e na prostituição. Nesse sentido, quando perguntamos “qual é a sua profissão”, obtivemos como resposta uma quantidade significativa de: “profissional do sexo”, “acompanhante”, “garota de programa”, “auxiliar de serviços gerais”, “faxina”, “limpeza”, “diarista” e algumas outras, como “auxiliar administrativo”, “motoboy”, “cabeleireira” etc. Outro dado relevante, é a completa invisibilidade das pessoas trans e pretas nos sistemas de promoção de cidadania e inclusão social, onde muitas sequer possuem documentos.

Diante do exposto, torna-se fundamental para o enfrentamento dos problemas supracitados, a reivindicação de políticas públicas e também para lançar luzes sobre as vulnerabilidades específicas da população LGBTQI+ em territórios de favelas. Nesse sentido, é urgente e fundamental produzir dados que preencham uma lacuna de informação e sobre as vulnerabilidades, violências, violações e assassinatos das pessoas LGBTQI+ em territórios de favelas a fim de lançar luzes para um problema que tem sido constantemente invisibilizado pelas políticas públicas hegemônicas. Assim, é preciso desenvolver ações que visem potencializar os corpos e as experiências LGBTQI+ de favelas, que muitas vezes não conseguem sair dos seus territórios, seja para estudar, trabalhar ou até mesmo gozar de momentos de lazer. Se o Estado insiste em nos matar de fome e de tiro, dentre outras formas, nós reafirmamos que, da mesma forma, insistiremos em Resistir.

Esta gostando do conteúdo? Compartilhe

Veja Também