Desresponsabilizando-se do social

Grupo de Pesquisa “Futuros da Proteção Social”¹, do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz
Imagem: Blog Gesua

O dramático quadro social brasileiro, agravado pelas políticas contracionistas e de austeridade adotadas nos últimos cinco anos, ganhou proporções gigantescas diante da pandemia. Ao quase meio milhão de vidas precocemente perdidas, somam-se os sucessivos recordes de desemprego e informalidade, o aumento da fome e da extrema pobreza, além do acirramento das já imensas desigualdades sociais do país

Diante desse cenário, proposições em torno de políticas públicas capazes de reverter o quadro e garantir proteção social aos brasileiros são mais do que urgentes. Mas é preciso cautela com propostas que aproveitam esse grave momento para, sob uma aparente preocupação com os segmentos mais vulneráveis da sociedade, desferir golpes mortais contra nosso já combalido sistema de proteção social e os direitos de cidadania inscritos na Constituição Federal de 1988.

Esse parece ser o caso do Projeto de Lei (PL n° 5.343/ 2020), de autoria do Senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), em tramitação no Congresso Nacional. Alicerçado em documento produzido por economistas liberais vinculados ao mercado financeiro, sob os auspícios do Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP), o PL busca instituir a chamada Lei de Responsabilidade Social, com o objetivo de “oferecer assistência a famílias em situação de vulnerabilidade e aos trabalhadores informais sujeitos a elevada volatilidade de seus rendimentos” (p.2). Um olhar mais acurado sobre a proposta revela, no entanto, que de boa intenção o inferno está cheio. Trata-se de um retorno ao passado, uma atualização extemporânea da Lei dos Pobres inglesa de 1834, que aboliu o “direito de viver” para dar passagem à constituição de um mercado de trabalho desregulamentado (POLANYI, 1980)2, agora sob o domínio do capital rentista.

¹ Sonia Fleury (coordenadora); Arnaldo Lanzara, Carlos Eduardo Santos Pinho, Fernanda Pernasetti, Lenaura Lobato, Luciene Burlandy, Mônica Senna, Ronaldo Teodoro e Virginia Fava (pesquisadores).

O PL propõe duas modalidades distintas de transferência monetária, definidas a partir de critérios de renda ainda mais focalizados do que os programas sociais atualmente existentes. O Benefício de Renda Mínima (BRM) unificaria os quatro tipos de benefícios do Programa Bolsa Família e consistiria na complementação da renda familiar até o limite de R$ 125,00 per capita, incluindo no cálculo a renda oriunda tanto do trabalho, formal ou informal, quanto de outras fontes, tais como os benefícios previdenciários e o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Já a Poupança Seguro Família (PSF) incluiria não só as famílias beneficiárias do BRM como também aquelas com “maior capacidade de geração de renda”. Funcionaria como uma espécie de poupança precaucional, individual, a ser resgatada em momentos de queda de rendimentos e seria constituída por depósito mensal de um valor equivalente a 15% da renda mensal de cada membro da família, com redução gradativa desse percentual conforme a renda declarada até atingir um determinado teto. Além dessas modalidades, o PL prevê a criação de uma poupança educacional para crianças e jovens no ensino fundamental e médio inscritos no BRM, com depósito mensal no valor de R$ 20,00 e saque apenas quando do término do Ensino Médio.

Sob a capa de um programa para beneficiar os mais pobres e vulneráveis, o PL encobre muitas armadilhas. Ao reconhecimento da desproteção social em que verdadeiramente se encontram os trabalhadores informais, o PL reduz a informalidade à volatilidade de renda. Ignora, assim, as múltiplas dimensões da insegurança social que atravessam o trabalho informal, tratado como um dado sociológico incontornável da “nova economia”.

² POLANYI, K. A grande Transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro, Campus, 1980

Nota-se a ausência de qualquer referência a um projeto ou visão de desenvolvimento nacional, abandonando explicitamente a preocupação com a defesa e expansão do mercado formal de trabalho no país. Embora parta da premissa de que informalidade e pobreza sejam fenômenos distintos, na medida em que a primeira, de fato, não significa necessariamente baixo nível de renda, ambas são encaradas de forma simplista sob o viés exclusivo da renda monetária e não como processos multidimensionais. Além disso, o PL adota critérios de elegibilidade bastante restritivos, reiterando seu caráter altamente focalizado e seletivo. A isso se agrega um amplo repertório moral sobre a pobreza e os pobres, assentado na ideia preconceituosa de que esses tendem a fraudar informações sobre seus proventos para tirar proveito de programas e benefícios sociais. Nesse sentido, ampliam-se os instrumentos para o controle dos pobres como forma de evitar tanto a subdeclaração de rendimentos quanto o incentivo à informalidade. E para isso, o CadÚnico, que foi se tornando um importante mecanismo para promoção da inclusão social, tem seu objetivo convertido em um meio para detectar possíveis fraudes e, assim, justificar exclusões.

Em um cenário de grave crise econômica com projeções bastante alarmantes para o pós-pandemia, a proposta busca moldar a construção de medidas de alívio da pobreza às restrições impostas pela austeridade, da qual é signatária. Sob o argumento de criar benefícios menos custosos e mais eficientes, a abrangência do programa submete-se às possibilidades do orçamento da União, mantendo o cumprimento das metas fiscais e a prioridade ao pagamento da dívida pública, sem ampliar os atuais recursos para a área social. O resultado inevitável é o achatamento da renda dos segmentos que hoje se encontram protegidos pelos benefícios vinculados ao salário-mínimo, dele se desvinculando. Mais ainda, os recursos do programa passam a ser aplicados integralmente em títulos do Tesouro Nacional, em um nítido desvio do fundo público para salvaguardar o capital financeiro por meio de uma fonte altamente regular e isenta de riscos.

Do ponto de vista da proteção social, há um claro retrocesso que busca substituir as diferentes modalidades de proteção social existentes por uma renda monetária bastante limitada e desconectada de uma ampla rede de serviços, programas e políticas sociais. O PL desarticula, assim, o padrão constitucional de proteção social brasileiro, desmontando a complexa institucionalidade dos diversos sistemas de política social construídos no país nos últimos trinta anos, a exemplo dos sistemas únicos de assistência social (SUAS), de saúde (SUS) e o sistema nacional de educação, rompendo com o paradigma de direitos que se instituiu no país com a Constituição Federal de 1988. Trata-se, portanto, de uma desresponsabilização com o social e o abandono dos pobres à própria sorte.

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