Novembro Negro. Mês da consciência negra. E também o mês do dia da favela. Mês de comemoração, certo? Em tese sim, mas não para a maioria das pessoas moradoras de favelas, especialmente da Complexo de Manguinhos. Isto porque, conforme a reportagem transmitida no RJTV (Globo), em 5 de novembro de 2021, os moradores sofreram com inúmeras operações policiais.
Segundo Fábio Britto, um dos líderes das associações de moradores de Manguinhos, as operações policiais foram desreipeitosas, sendo muitas delas à noite – motivos que levaram-no a exigir, ao vivo, na Globo, “uma resposta do governador do porquê do Bope estar realizando essas operações, ainda por cima na semana em que se é comemorado o Dia da Favela.”¹
A preocupação dele e de todos os moradores e moradoras de Manguinhos tem sentido, afinal de contas, nestes 15 anos, de acordo com a pesquisa do grupo Geni, “13.584 pessoas perderam a vida pelas mãos das forças policiais, grande parte delas nas 11. 383 operações policiais realizadas entre 2007-2021 na Região Metropolitana.”²
E a situação torna-se ainda mais preocupante quando se olha a lei de diretrizes orçamentárias do Estado do Rio de Janeiro para 2022, conforme muito bem pontuou a pesquisa da iniciativa direito à memória e justiça racial³, pois há a previsão de novecentas mil munições para a polícia militar e novecentas mil munições para a polícia civil, ou seja: quase 2 bilhões de munições para 2022 como meta!⁴
² http://geni.uff.br/wp-content/uploads/sites/357/2021/11/Relatorio-embragos_GENI_FOGO.pdf
³ https://dmjracial.com/wp-content/uploads/2021/05/LDO-2021-PRODUCAO-DA-MORTE-3-1.pdf
⁴ http://www.fazenda.rj.gov.br/sefaz/content/conn/UCMServer/uuid/dDocName%3aWCC42000022000
Isto, a toda evidência, talvez explique por que na operação do Salgueiro, que culminou com a morte de 9 pessoas, os próprios policiais tenham relatado no inquérito, em matéria veiculada no Fantástico, que eles teriam dado mais de 1.500 tiros naquela operação.⁵
Ora, tendo em conta que muitas munições têm um período de validade relativamente curto, sobretudo se não forem armazenadas na temperatura e em locais adequados, variando entre dois ou três anos,⁶ conclui-se que as polícias têm que usar quase dois bilhões de cartuchos em dois ou três anos…
Aliás, ainda sobre a operação no morro do Salgueiro, conforme reportagem veiculada no Fantástico e documento oficial apresentado na referida matéria, quatros policiais teriam – somente eles – disparado mais de 600 tiros.⁷
Diante de todo este cenário de guerra, moradores de Manguinhos, instituições, coletivos, movimentos sociais e defensores de direitos humanos se juntaram (não para enfrentar o Estado ou a polícia), mas apenas para buscar soluções pacíficas a fim de acolher as demandas da população local.
Depois de inúmeras reuniões que contaram com o Conselho Comunitário de Manguinhos, Fórum Social de Manguinhos, Mães de Manguinhos, Associações de moradores, comissão de direitos humanos da
⁶ https://defesa.org/dwp/como-armazenar-municoes-por-longos-periodos/ “Neste contexto, começar a armazenar munição HOJE se torna uma necessidade, porém, as munições em geral possuem um período de “validade” relativamente curto. Em condições normais, a munição pode ficar armazenada por 2 ou 3 anos. A partir deste prazo, ela tende a não funcionar direito, podendo falhar com muito mais frequência ou, deflagrar-se com bem menos energia do que um disparo normal.”
OAB-RJ, Defensoria Pública e inúmeras outras instituições e coletivos, surgiu a ideia de uma caminhada pacífica por direitos em Manguinhos, conforme os registros a seguir:
O Supremo Tribunal Federal está próximo de julgar a ADPF 635, que ficou popularmente conhecida como a ADPF das favelas. Este julgamento, considerado pelo Ministro Fachin como o mais importante da história do STF, objetiva analisar a implementação de algumas demandas de inúmeros movimentos sociais, cabendo destacar:
Utilização de ambulâncias, impossibilidade de utilizar helicópteros como plataforma de tiro, proibição de usar escolas, creches e hospitais como base de operações policiais em confrontos, prioridade no caso de mortes envolvendo crianças e adolescentes, proibição de mandado coletivo genérico, preservação da cena do crime, investigação independente para a investigação de homicídios praticados por policiais, nos últimos 15 anos, a ADPF das favelas representou a maior redução da letalidade policial, houve uma redução em 23% dos crimes contra a vida e em 39% dos crimes contra o patrimônio, comunicação ao MP sobre as operações policiais, plantão do Ministério Público, proibição que governadores incentivem a letalidade policial, polícia impôs sigilo de 5 anos em relação aos fatos oriundos da chacina no jacarezinho, implementação de câmeras, plano de redução da letalidade policial, melhorias para os policias, a exemplo de tratamento psicológico adequado, dentre outras coisas.
Caminhando para o fim deste artigo, que terá continuidade após os desdobramentos do julgamento no Supremo Tribunal Federal, vale destacar que um dos pontos principais reivindicados pelos movimentos sociais foi a suspensão das operações policiais durante a pandemia, pedido acolhido pelo Ministro Fachin. A exceção ficou por conta das situações excepcionais que vêm gerando um intenso debate quando se olha os motivos alegados pelas polícias para fazerem operações policiais, conforme anexos contidos no ofício eletrônico n° 182448/2020/ STF do Ministério Público do Rio de Janeiro e a base de operações policiais do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF).⁸
Segundo dados do fogo cruzado: “Em 2020, 22 crianças (com idade inferior a 12 anos), 40 adolescentes (com idade entre 12 anos e 18 anos incompletos) e 35 idosos (a partir de 60 anos) foram baleados na Região Metropolitana do Rio. Destes, 8 crianças, 18 adolescentes e 19 idosos morreram. Em 2019, foram 24 crianças, 89 adolescentes e 42 idosos baleados, dos quais, 7 crianças, 53 adolescentes e 35 idosos morreram.”⁹
Ou seja: 24 crianças baleadas em 2019, sendo 7 mortas; e 22 baleadas em 2020, sendo 8 mortas.¹0
Ora, quando se observa que várias crianças foram mortas em operações policiais, a pergunta que fica é: pode ser entendido como excepcional uma operação policial para tirar barricadas ou para parar bailes funks?
Será que faz sentido que a maior quantidade de operações policiais sejam por estes dois motivos? Dessas crianças, 4 foram mortas dentro das suas casas e 4 foram baleadas também dentro das suas casas.¹¹ Será que justifica? A resposta somente pode ser negativa. Por todos estes motivos, os movimentos sociais esperam que o STF e as demais instituições ponham um freio nessa tragédia.
⁸ Fonte MPRJ: anexos contidos no ofício eletrônico n° 182448/2020/STF do Ministério Público do Rio de Janeiro – http://geni.uff.br/wp-content/uploads/sites/357/2021/11/Relatorio-embragos_GENI_FOGO.pdf.
⁹ https://fogocruzado.org.br/tiros-em-escolas-2019/