Dossiê da Zona Oeste: será que isso na Zona Sul seria normal?

Lucas Almeida Melo, morador de Campo Grande, integrante do Coletivo Artístico Sustentável e Alternativo, professor no projeto Missão Arte Educação na Favela do Aço, Santa Cruz.

Rio, serras de veludo
Sorrio pro meu Rio
Que sorri de tudo
Que é dourado quase todo dia

Rio, Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli (1963).

Afastado do Rio de Janeiro da Bossa Nova, das calçadas portuguesas, da perfeição das montanhas e do vai e vem do mar, existe uma cidade ainda pouco conhecida dos cartões postais, ou melhor, invisibilizada pelo poder público. Ser professor de artes nas zonas afastadas da Cidade Maravilhosa é ter um duplo diploma e com bastante honraria: Ame ou deixe-o. Logo, Rio, teu mar, praias sem fim, Rio você não foi feito pra mim e para a maioria dos cariocas que carregam essa cidade nas costas.

Entender os problemas da cidade também é pensar sobre o papel político do professor dentro da escola. Quem acredita que a aula não deveria ser política, talvez nunca tenha entendido o papel social de uma instituição de ensino. Foi com o objetivo de pensar sobre os problemas da cidade que surgiu a ideia do “Dossiê da Zona Oeste: Cartografias das margens (2020)”, ele nasceu da força do ódio, nos trens sucateados do Ramal Santa Cruz, e nas conversas com amigos professores sobre a cidade. São mapas que não estão nos livros de geografia.

A cartografia foi elaborada para viralizar na internet. Duas referências para o meu trabalho são do grupo feminista de artista-ativista Guerrilha Girls fundado em 1985 em Nova York e os movimentos artísticos da Revolução e das Vanguardas Russas no começo do século XX. A maioria dos artistas que conhecemos desse período foram professores-ativistas pela educação; simplificavam as artes buscando uma comunicação melhor com o povo, como forma de propaganda para agitação e transformação social. De alguma maneira, deixamos a internet para o campo da extrema-direita e das terras de fake news. Convoco todos os professores a ocuparem as redes sociais para mobilização.

A ideia para o trabalho surgiu de duas experiências em 2019, porém, as discussões sobre a cidade ficaram ainda muito latentes na minha formação de licenciatura na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA-UFRJ). Afastados dos problemas sociais da cidade, muitos professores não tinham noção da Zona Oeste do Rio de Janeiro. De maneira muito sucinta, a primeira experiência veio de uma conversa informal com um senhor motorista que acreditava que todos os cinemas apresentavam uma mesma programação. Como um senhor foi enganado por todos esses anos? Comentei que os filmes exibidos na sala de cinema dependem do público e do bairro. Na Zona Oeste do Rio de Janeiro, dificilmente você irá encontrar um filme longe dos blockbusters norte-americanos ou as comédias pastelão brasileira, ou seja, uma cinematografia cheia de estereótipos e busca por mitos.

A segunda experiência veio das três turmas de ensino médio onde eu lecionava sobre artes. Apesar de ser uma escola de classe média, o direito à cidade e os aparelhos culturais nunca tinham sido debatidos. Se eu dependesse do currículo escolar, seria mais uma aula chata de algum artista branco, euro-centrado, e afastado do cotidiano escolar. De certa maneira, como professor, subverter sempre foi uma questão na história da arte. Parei o conteúdo da escola para discutir sobre a desigualdade na cidade que, por acaso, foi temática do Enem no mesmo ano: democratização do acesso ao cinema no Brasil.

Essas experiências foram muito importantes para pensar o Dossiê da Zona Oeste: Cartografias das margens (2020), que teve o objetivo de juntar os dados desconectados e através das propriedades da arte e do design, apresentar os frios dados científicos de maneira didática e engajada. O trabalho surgiu no âmago do pouco investimento em cultura na Zona Oeste, mas expandiu-se para diversas experiências sobre as diversas desigualdades na Cidade Maravilhosa, como a cultura, educação, transporte público e mais recentemente sobre a saúde.

A Zona Oeste descobriu a vacina para a Covid-19? Não sei ao certo, mas as pessoas pararam de usar máscara já tem um bom tempo. Nos mercados, ainda se encontram as regras de isolamento social e ainda há pessoas com máscara. Mas o abandono sobre esse resto da cidade chega a ser entristecedor. Não há ações ou campanhas da prefeitura em Campo Grande, Santa Cruz, Bangu e adjacências. De alguma forma, o Brasil foi capaz de transformar um problema de saúde mundial em um vírus comunista. Aparentemente, as pessoas estão acreditando nisso. Desde a verificação no pulso ou as máscaras usadas como bolsinha na mão, lavar as mãos virou um ato revolucionário e subversivo.

O Dossiê da Zona Oeste e laborado para a C OVID-19 foi um ato de desespero para conscientizar as pessoas sobre os problemas surreais da região. Não vivemos uma doença democrática.

Fiz o levantamento de dados pelo Painel de Covid da Prefeitura do Rio em comparação com o painel Mundial de Covid da Google e cheguei em alguns dados devastadores para qualquer morador da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Se alguns bairros da Zona Oeste fossem países, estaríamos com problemas piores que na Etiópia, Uruguai, Síria ou Iraque, por exemplo. Dá p ara a creditar? Depois de passar pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, eu faço sempre um exercício e me perguntar: será que isso na Zona Sul seria normal?

Estamos em Guerra. Será que isso na Zona Sul seria normal?

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