O Brasil ocupa o terceiro lugar do ranking global do encarceramento masculino e o quarto lugar no ranking global do encarceramento feminino. Somente entre os anos de 2006 e 2016, a população carcerária brasileira quase dobrou, passando de 401.200 a 726.700 presos e presas². Estima-se que 40% dessas pessoas estão presas provisoriamente. Isto é, elas sequer foram condenadas pelo sistema de justiça criminal, e aguardam julgamento privadas de liberdade. Esse quadro é reflexo, sobretudo, de políticas de segurança pública racistas, pautadas na criminalização da pobreza e na repressão policial em territórios de favela e periferia, sob pretexto da chamada “guerra às drogas”.
Como destaca a ativista anti-cárcere e presidente da Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade de Minas Gerais, Maria Tereza dos Santos: “Os nossos estão se matando por um dinheiro que nem é deles. Porque eles vendem a droga, morrem por causa da droga, são presos por causa da droga e nenhuma de nós têm o dinheiro da droga para pagar advogado para eles”. Por isso, cada vez mais as pautas da violência de estado e do desencarceramento têm se estreitado. Maria Dalva da Costa Correia da Silva, uma das fundadoras da Rede de Movimentos e Comunidades Contra a Violência após perder um filho na histórica Chacina do Borel, afirma que isso é inevitável já que: “Quando não nos matam, nos ditos autos de resistência, eles nos prendem!”.
1 Fundada em janeiro de 2017, a Frente Estadual pelo Desencarceramento – RJ (FRENTE-RJ) é um movimento social formado por mais de 60 movimentos, coletivos e organizações da Sociedade Civil, familiares de pessoas sobreviventes dos sistemas prisional e socioeducativo e sobreviventes do sistema
2 Infopen 2016. Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoas-presas-no-brasil/relatorio_2016_junho.pdf
As falas das duas defensoras de direitos humanos remetem a como o punitivismo, apoiado na falsa promessa de que a atuação letal das polícias e a expansão do sistema prisional irão resolver os problemas de segurança da sociedade. Globalmente, essa ideologia punitivista na segurança pública é fortemente atravessada pelo racismo e pela misoginia; o que também ocorre no caso brasileiro. No Brasil, a população prisional é majoritariamente negra (64%) e, no período entre 2000 e 2016, o aumento da taxa de encarceramento feminino foi de 698%3. Nesse sentido, é importante destacar que, como apontam especialistas, a “Nova Lei de Drogas” de 2006 teve impacto profundo para o agravamento da situação. Em 2017, 1 em cada 3 presos no país já respondia por tráfico de drogas4. E, segundo censo realizado pelo Ministério da Justiça em junho de 2019⁵, a população prisional aumentou 4% nos últimos dois anos, chegando a 773 mil pessoas presas; entre eles, 163 mil cumprem penas por delitos relacionados ao narcotráfico⁶ . Entre as mulheres, atualmente, 70% das prisões correspondem a tráfico de drogas. Trata-se, sobretudo, de mulheres negras jovens (entre 18 e 29 anos), rés primárias, com filhos e chefes de famílias monoparentais.
Foto: Acervo pessoal Guilherme Fernandéz
3 Disponível em: https://theintercept.com/2018/03/08/encarceramento-feminino-mulheres/
4 Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/um-em-cada-tres-presos-do-pais-responde-por-trafico-de-drogas.ghtml
⁵ Disponível em: https://noticias.r7.com/brasil/trafico-de-drogas-lidera-ranking-de-crimes-em-censo-de-presos-29022020
⁶ Idem.
Com um ritmo tão intenso de encarceramento e um déficit de 312.925 vagas⁷, as prisões brasileiras são verdadeiras calamidades de saúde pública. No estado do Rio de Janeiro o cenário não é diferente. Mais de 50 mil homens e mulheres habitam as insalubres e superlotadas prisões fluminenses, onde há um déficit de mais de 20 mil vagas, segundo o Ministério Público (MPRJ). Essas pessoas vivem em celas sem ventilação – por vezes, com paredes mofadas e vazamentos de esgoto -, têm alimentação precária, acesso bastante restrito à água potável e quase nenhum acesso aos serviços de saúde. São obrigadas a viver em condições propícias ao desenvolvimento de todo tipo de doenças e a disseminação de enfermidades infectocontagiosas.
A situação do sistema socioeducativo também é grave. As unidades de internação podem ser considerados verdadeiros presídios com nome de escola, como preconiza o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT RJ) no título de um de seu relatório sobre os espaços de privação de liberdade para adolescentes no estado do Rio de Janeiro (2017)⁸. Segundo o levantamento anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) referente a janeiro de 2015 – lançado apenas em 2018 – demonstra que entre os anos de 2009 e 2015, houve um aumento de 58,6% no número de jovens cumprindo medidas de privação ou restrição de liberdade no país. Em 2015, eram um total de 26.868 adolescentes – 2.235 deles no estado do Rio de Janeiro. O sistema socioeducativo tem como alvo privilegiado adolescentes negros: 91% estão nas unidades referenciadas como masculinas e 61% tem cor preta ou parda. Até 2015, 49% desses adolescentes respondiam por atos infracionais envolvendo furto e roubo, e 24% por infrações relacionadas ao tráfico de drogas.
Segundo o Conselho Nacional do Ministério Público, quatro anos mais tarde, em 2019, o número de adolescentes cumprindo medidas de privação permanente de liberdade chegava a 18.086, havendo um déficit de 1.925 vagas nas instituições socioeducativas brasileiras. Cabe ressaltar que, como as unidades prisionais para adultos, em todo o país tais espaços são historicamente marcados pela precariedade das condições de vida, pelas violações de direitos e violência contra esses jovens.
⁸ Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1g9zmH9HXgN1NGrcxeLAd9u0dMsCvLN9L/view
Considerando a superlotação e as terríveis condições de encarceramento de pessoas adolescente e adultas no país e em nosso estado, chama atenção o silenciamento social em relação aos impactos da Covid-19 sob esse segmento específico da população desde que a pandemia atingiu o estado do Rio de Janeiro em março deste ano. No início da pandemia, especialistas apontavam que nas prisões cada contaminado/a pelo novo coronavírus poderia vir a contaminar outras 10 outras pessoas, enquanto na população livre a expectativa era que cada doente contaminasse de 2 a 3 pessoas⁹. Ademais, ao contrário da população livre, a população em privação de liberdade tem quase nenhum acesso ao Sistema Único de Saúde. Nas unidades prisionais fluminenses, por exemplo, quando iniciou a pandemia havia um quadro escasso de profissionais de saúde na Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP RJ), dada a ausência de concursos públicos e ajustes salariais desde 1998. Esses poucos profissionais passaram a formar equipes de atendimento volantes com 8 membros cada. Soube-se que ao longo dos últimos meses servidores da SEAP RJ se infectaram e/ou adoeceram, tornando possibilidade de dar conta de milhares de pessoas ainda mais improvável.
⁹ Disponível em: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/csp/artigo/1049/covid-19-nas-prisoes-um-desafio-impossivel-para-a-saude-publica#C1
Apesar da redução no efetivo das unidades prisionais fluminenses para 45.411 pessoas presas, e o número de presos liberados nas audiências de custódia tenha subido de 33% para 51,5% em decorrência da pandemia, – há de se saudar o árduo trabalho da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e de coletivos de advogados populares que redigiram inúmeros habeas corpus, pedidos de progressão de regime e etc. – a adesão à Recomendação 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)10 foi muito menor que o necessário. Milhares de homens e mulheres enquadrados nos grupos de risco não foram liberados. Ademais, outras medidas de combate à Covid-19 em locais de privação de liberdade não foram implementadas de forma satisfatória. Insta salientar que o próprio contexto prisional fluminense impede em absoluto o distanciamento social e medidas básicas de segurança sanitária, sendo central a implementação de medidas desencarceradoras para a garantia do direito à vida e à integridade física das pessoas privadas de liberdade. Denúncias indicam que, em algumas unidades, pessoas com sintomas de síndrome gripal estavam sendo incorporadas ao efetivo de internos ou internas. Nos sistemas prisional e socioeducativo, a incomunicabilidade imposta pela interrupção das visitas e pela morosidade ou não implementação de meios de comunicação alternativos – e efetivos -, gerou pânico nas famílias e reduziu a possibilidade de adolescentes e adultos privados de liberdade denunciarem as violações de seus direitos, situações de violência e tortura.
Tendo em vista o contexto de enfrentamento à pandemia de Covid-19 e considerando a urgência de se acompanhar os impactos do Covid-19 no sistema prisional e no sistema socioeducativo, a Frente Estadual pelo Desencarceramento do Rio de Janeiro e o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, com apoio do DataLabe, lançaram, no dia 4 de junho, a Plataforma Desencarcera, RJ!, que tem o objetivo de receber denúncias sobre a situação de pessoas presas no sistema carcerário fluminense. A plataforma consiste em um formulário que garante, com segurança, a realização de monitoramento sobre as questões de saúde, condições das unidades, acesso à justiça, acesso à informação por parte dos familiares, dentre outras questões. As denúncias podem ser feitas de modo anônimo ou identificado, versando sobre casos individuais ou coletivos. Encaminhamos e acompanhamos os casos junto às instituições competentes.
10 A Recomendação 62/2020 dispõe sobre orientações aos órgãos do judiciário para evitar contaminações em massa da Covid-19 no âmbito dos sistemas prisional e socioeducativo. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/ atos/detalhar/3246
Foto: Acervo pessoal Ana Paula Soeiro
Aliado a isso, a FRENTE-RJ tem buscado fortalecer movimentos de familiares no Rio de Janeiro e em outros estados do Brasil a partir da articulação e da comunicação da Agenda Nacional pelo De sencarceramento11. Isso têm resultado em ações que vão desde de denúncias internacionais sobre o Estado Brasileiro à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e à Organização das Nações Unidas (ONU) e a campanhas nacionais contra a criminalização das famílias e contra o uso de contêineres como celas de isolamento durante a pandemia, até e assessoria à grupos e coletivos de familiares na formação de 7 novas Frentes Estaduais; e ações locais de assistência à familiares de adolescentes e adultos privados de liberdade que perderam seus empregos ou foram impedidos de trabalhar durante a pandemia. Durante a pandemia, as demandas que recebemos se intensificaram e diversificaram, impondo novos desafios. Ao mesmo tempo, houve um aumento relevante do engajamento de familiares na luta anti-cárcere no Rio de Janeiro e em todo o país. Esse novo fôlego em um contexto de grave crise social e política tem sido fundamental para lidar com os impactos da pandemia Covid-19.
11 Movimento social surgido a partir do documento Agenda Nacional pelo Desencarceramento (Pastoral Carcerária, 2014; 2016).