Entrevista com Sílvia de Mendonça

Por Fábio Araújo, Sociólogo, editor do Radar Covid-19 Favela
Imagem: Acervo pessoal Silvia Mendonça

“A LUTA PELA ELIMINAÇÃO DO RACISMO, DA INTOLERÂNCIA E DO RACISMO RELIGIOSO, DO SEXISMO, DA LESBOFOBIA E DA TRANSFOBIA E DE OUTRAS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO É DETERMINANTE PARA A PRESERVAÇÃO DA VIDA NEGRA E ESTE É O MAIOR LEGADO PARA AS FUTURAS GERAÇÕES”.

Você poderia se apresentar e nos falar um pouco sobre a sua trajetória política?

Sou Sílvia Mendonça. Nasci e vivo em Duque de Caxias, Baixada Fluminense. Sou formada em jornalismo e produção cultural e também sou atriz e professora. Minha trajetória tem laços diretos com a criação da primeira TV de rua do país, a TV Olho, na década de 1980. Integro o Movimento Negro Unificado (MNU), o Movimento de Mulheres Negras e fui uma das fundadoras do Partido dos Trabalhadores na minha região e do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDIM). Fui eleita conselheira duas vezes, pelo Fórum de Mulheres da Baixada Fluminense, para o CEDIM. acompanhou a implantação da Maternidade Xerém e da Delegacia de Atendimento á Mulher (DEAM) de Duque de Caxias. Estive também envolvida nos movimentos contra esterilização em massa de mulheres, de mulheres em comunicação com o meio ambiente, de saúde, contra a violência doméstica contra a mulher e pela democratização dos meios de comunicação. Atuei em diversos movimentos e sigo na marcha pela vida do povo preto, contra o genocídio da juventude negra, o feminicídio de mulheres, pelo desencarceramento de mulheres, majoritariamente negras, contra o racismo e a intolerância religiosa, por direitos humanos. Recentemente participei da organização dos Atos #EleNão, do Parem de Nos Matar, e tenho participado ativamente das culturas populares urbanas periféricas, como os SLAMs, Rodas de Poesia, Cyphers, MCs, Hip Hop e rodas culturais.

O Movimento Negro Unificado acaba de realizar o seu 19º Congresso. Qual o legado político do movimento negro?

Às vésperas de completar 44 anos, é incontestável que o Movimento Negro Unificado (MNU) tem papel fundamental na formação de lideranças que lutam por igualdade racial no país, esse é um legado histórico. Passos importantes foram dados, exercendo protagonismo em identificar fundamentos sobre ser negro nesse país, apontar caminhos para que a população negra se capacitasse para que melhor lutasse por direitos. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão, a extinguir o tráfico negreiro, foi o maior território escravista do Ocidente. E o resultado é um legado de uma política genocida, de desigualdades de acesso a bens e serviço e exclusão total dos espaços de poder. O MNU assume lugar de denúncia e de proposição na defesa de que o governo brasileiro tem que assumir como política de Estado o processo de Reparação para o povo negro brasileiro, em razão das dívidas históricas, herança do Brasil Colônia e Império.

A Declaração de Durban coloca a urgência do acesso aos serviços públicos, assim com ações afirmativas em todos os territórios e comunidades negras. O maior legado que percebo do MNU é o de ampliar diálogos com a juventude e com as mulheres negras, em especial, que estão nas religiões de matriz africana e afro-brasileiras, nas comunidades e periferias, nas universidades, nos espaços de difusão cultural, nos equipamentos de formulação de politicas públicas, e outros, tendo como foco o empoderamento da nossa população para construirmos juntos políticas públicas, debater o racismo e suas variadas manifestações, como o preconceito e a discriminação racial. Olhemos para os Legislativos, Executivos e Jurídicos, para o setor privado e outros segmentos da sociedade civil e veremos nossa invisibilidade.

Ação afirmativa e atitude positiva são fundamentais para se ter equidade político, econômico e social. Não é possível mais a crescente concentração de renda nas mãos de poucos e milhões de negras e negros com seus corpos violados. A luta pela eliminação do racismo, da intolerância e do racismo religioso, do sexismo, da lesbofobia e da transfobia e de outras formas de discriminação é determinante para a preservação da vida negra e este é o maior legado para as futuras gerações.

Qual sua avaliação sobre o atual cenário político brasileiro, às vésperas de uma eleição?

O Brasil e as eleições de 2022 representam um dos cenários políticos mais dramáticos e sombrios vivenciados por nós, em especial a população negra, comunidade LGBTQI+, religiosos de Matriz Africana e Afro-brasileiras, moradores de favelas e das periferias, ativistas dos movimentos sociais e defensores de direitos humanos. Um cenário marcado por forças conservadoras e autoritárias que defendem o sentido das desigualdades e a retirada de direitos humanos fundamentais, desmontando o Estado de Direito Democrático e fortalecendo políticas de extermínio.

É preciso construir um projeto de país que dialogue com periferias e comunidades historicamente negras, especialmente a juventude negra; que dialogue com os povos indígenas, ambientalistas, com as culturas urbanas e periféricas, com as trabalhadoras, que são, majoritariamente, mães chefas das famílias. É fundamental acabar ou diminuir drasticamente a fome, mas também proporcionar o retorno ao trabalho e o acesso à renda e acesso a moradia. É um caminho indispensável que está nas vozes do povo preto e pobre. As outras questões não são menores, como a ambiental, população quilombola e indígena.

Imagem: Acervo pessoal Silvia Mendonça

Qual a importância dessas eleições?

Resgatar o Brasil de projetos políticos autoritários em curso, rever políticas que retiraram direitos, especialmente do povo negro e pobre. Mas quero focar em uma questão importante, o papel da mulher negra. A politica precisa escurecer. Historicamente nós mulheres negras do Brasil, irmanadas com todas as outras mulheres, sempre estivemos em marcha; inspiradas no legado da nossa Ancestralidade inspiramos a construção e consolidação de marcos civilizatórios. Somos as que nos organizamos contra os mecanismos de exclusão numa sociedade que insiste nos sistemas violentos de racismo. Mudar cenário nos espaços de poder é fundamental, necessário, e isso é possível. É preciso que a política partidária possibilite a oportunidade de ocuparmos esses espaços institucionais, negados historicamente às mulheres negras e as pessoas periféricas. No atual Congresso Nacional, apenas 17,8% são negros: 89 de 513 deputados e 17 de 81 senadores. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam para a subrepresentação, visto que 56,2% dos brasileiros são negros, o que, por sua vez, indica para a necessidade de mais candidaturas negras.

Que lugar é esse chamado genericamente de “Baixada Fluminenses? Quais são as possibilidades de participação popular na política local nessa região?

Vivo numa região que não é diferente do Brasil. Em sua maioria composta por mulheres, com expressiva composição de mulheres, majoritariamente negras, chefas de famílias, a partir dos dados estatísticos. Somos nós a estar à frente das trincheiras das lutas pela liberdade do nosso povo. No passado, as nossas lutas eram menos violentas. Hoje, com a formação dos vários setores violentos que se institucionalizaram e determinam a política local, principalmente nos Executivos e Legislativos, a luta está acirrada e milhares de ativistas sofrem perseguições ou encontram-se em situações extremamente vulneráveis. Mas a luta pulsa, em várias frentes.

Uma região com 13 municípios que tem em Duque de Caxias o terceiro maior colégio eleitoral. Entre os 92 município do estado do Rio de Janeiro, Duque de Caxias ocupa o segundo lugar quanto ao PIB (primeiro é o Rio Janeiro, com uma extensão territorial maior e uma população com quase sete milhões de habitantes), com uma população que não chega a 900 mil habitantes, oitava economia do Brasil; o município sofre com a ausência de investimento que possa subir o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da população local. A Baixada Fluminense tem uma marca de ausência dos campos populares e comprometidos com as lutas por direitos humanos nas suas várias instâncias de poder. Hoje, a sua maior unidade se dá no aspecto cultural. Alguns setores da sociedade civil organizada que assumem preponderância pública, que deveriam ser de combate a todas as formas de opressão, na luta pela organização do seu povo, acabam se aliando aos seus opressores, num território dominado por denominações religiosas que não dialogam com outras práticas de fé. Os quadros políticos eleitos, necessariamente, não representam as instituições e campos que fazem o enfretamento ao processo antidemocrático. Terra de ninguém, o povo se ausenta para reverter esse quadro. Uma região violenta, que inicialmente tinha relação com a questão fundiária, para em seguida ser utilizada como elemento de coação do aparato do Regime Militar. No processo de redemocratização “sofisticaram-se” para o ingresso nos poderes executivo e legislativo dos municípios. Aqui não é um dos lugares menos perigosos para se fazer política.

Contudo, a Baixada Fluminense segue se organizando com diversos ativistas, com a academia, instituições jurídicas e aliados políticos partidários da esquerda na defesa da autonomia e resgate da história de uma região que assumiu protagonismo no cenário estadual e nacional nos vários atos de construção da nossa identidade e de formular propostas políticas populares que resgatem sua identidade de luta e transformação da realidade local pelo olhar dos munícipes acuados, que é bem maior do que o opressor.

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