“Eu tenho sofrido muito. O trabalho doméstico é muito pesado.”

Monique de Carvalho Cruz, pesquisadora da Justiça Global, membro da Associação Brasileira de Pesquisadoras/es Negras/os (ABPN ), do Fórum Social de Manguinhos e do Coletivo de Mulheres Afroindígenas Zacimba Gaba

“A merendeira desce, o ônibus sai Dona Maria já se foi, só depois é que o sol nasce.“

Ordem Natural das Coisas – Emicida

O título deste texto está anotado no meu caderno de campo, trata-se de um trecho do desabafo feito por uma professora universitária durante uma reunião online de um “colegiado” no início da pandemia de Covid-19. Anotei essa frase mobilizada pela importância do trabalho desempenhado por mulheres como minha mãe nas casas de pessoas como a professora.

Em 1979, Lélia Gonzalez escrevia o seguinte em um jornal do movimento negro: “Acordar cedinho todos os dias. Põe lata na fila da bica, adianta o almoço, prepara o café, acorda as crianças, lava a roupa mais pesada e desce pra ir pro emprego. Antes, deixa as crianças na escola”.

O episódio que narrei acima, articulado com a explanação de Lélia Gonzalez demonstra que a divisão racial do trabalho é a base da vida. Não apenas da vida da família da professora ou da minha, mas de toda a sociedade. Acrescente-se à esta reprodução o racismo e o sexismo que colocam as mulheres negras no lugar do cuidado, da promoção de uma vida limpa e saudável para as famílias brancas herdeiras dos sentimentos e práticas escravocratas que garantem a reprodução material e emocional da vida.

A colonização eurocristã promoveu e incutiu nas nossas mentes e corpos toda a racionalidade colonial que implica diretamente na forma como as relações sociais se constituíram nesta nação de gente preta dominada por homens brancos.

Para enfrentar a Covid-19 o isolamento social é necessário, mas, como disse Françoise Vèrger: “Há os confinados/as e os não confinados/as, esses últimos para garantir a vida dos primeiros”. E nesse processo de exploração máxima do trabalho, que ganham contornos mais sofisticados na democracia, é que vão se aprofundando as ideias de quem são as pessoas que podem ser mortas seja pela polícia, pela Covid-19, ou pelas condições de moradia, de não-acesso a serviços e políticas sociais.

A fala que intitula este texto pretende demonstrar que o pensamento hegemônico capitalista, especialmente em países como o nosso, constitui a sociedade racializada que se volta aos interesses daquelas pessoas que podem ser “cuidadas por outras”. A possibilidade de ter alguém para limpar sua casa, lavar suas calcinhas/cuecas, fazer a comida, pôr à mesa e ainda cuidar das crianças (ou dos cães criados como crianças) é o que permite o status social da classe média brasileira e a aproxima das classes ricas.

Essa forma de exploração do trabalho das mulheres negras é parte fundamental do genocídio antinegro no Brasil. No senso comum é compreendido como a morte física, mas envolve processos sistêmicos de eliminação e controle das pessoas negras de todos os sexos e todas as idades, por políticas diversas.

Durante a pandemia muitas crianças negras morreram pela violência armada, mas neste texto quero lembrar e homenagear três crianças negras de favelas, filhas de mulheres trabalhadoras mortas pelo racismo (o mesmo que determina as ações militarizadas do Estado) que relegou às suas mães o lugar do cuidado de outras pessoas como única possibilidade de alimentar suas famílias.

Miguel Otávio, de cinco anos, Evelyn e Jennefer, de três e sete anos. Miguel foi posto pela patroa da mãe no elevador e caiu do nono andar de um prédio de luxo em Recife, no dia 2 de junho, quando sua mãe saiu do apartamento para passear com o cachorro da patroa. Em 26 de junho, no Rio de Janeiro, Evelyn e Jennefer estavam sob o cuidado dos irmãos mais velhos quando um curto circuito em um ventilador no quarto delas gerou um incêndio. As duas morreram com um dia de diferença. A mãe foi trabalhar e as deixou com dois irmãos adolescentes, assim como minha mãe deixava meus irmãos comigo.

A escola não funciona, e os/as brancos/as não querem limpar suas próprias casas. Assim, a opção que temos é nos cuidar coletivamente em um país onde a vida negra não importa. Façamos nós, por nós mesmas. Sigamos os exemplos das mães de vítimas do terrorismo de Estado: cobremos que as instituições funcionem, que garantam direitos, que provenham serviços de qualidade. Usemos todos os instrumentos possíveis para ir rumo à liberdade, ao direito de viver e de existir plenamente, assim como fizeram todas as mulheres antes de nós. Não esqueçamos que memória é um instrumento de luta e resistência.

Miguel, Eveleyn e Jennefer não serão esquecidos.

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