Como uma pessoa deslocada da crise climática de Petrópolis, em 2022, experimentei os impactos devastadores das mudanças climáticas em minha vida e nas vidas das pessoas ao meu redor. O deslocamento climático, também conhecido como migração climática, é uma crise global crescente que afeta milhões de pessoas a cada ano. Ocorre quando indivíduos ou comunidades são forçados a deixar as suas casas e os seus territórios devido aos impactos das mudanças climáticas, como o aumento do nível do mar, as secas, as inundações, entre outros eventos climáticos extremos.
Trata-se de uma questão complexa, que afeta não apenas o bem-estar físico e material dos deslocados, mas também suas identidades socioculturais. Como resultado, é essencial que abordemos a questão não apenas de uma perspectiva humanitária, mas também de uma perspectiva de direitos humanos. Este artigo tem como objetivo explorar os desafios enfrentados pelos deslocados climáticos, incluindo as barreiras legais, sociais e econômicas, além de propor possíveis soluções. A minha intenção é enfocar a necessidade urgente de ações para lidar com o deslocamento climático, bem como ampliar as vozes dos grupos que são diretamente afetados por estas crises sem precedentes.
Os deslocados climáticos entram na categoria de migração forçada (refere-se a qualquer situação em que as pessoas são forçadas a deixar suas casas), que inclui os atingidos por catástrofes climáticas, ambientais, naturais ou provocadas, as quais inviabilizam a vida em seus locais habituais de residência, mas que não chegam a atravessar fronteiras internacionais – ao contrário do termo “refugiados ambientais”, que são protegidos por leis, marcos etc. Como os deslocados climáticos continuam no próprio país, em tese, seguem sob a proteção do Estado e das garantias constitucionais, mas apenas em tese, já que não contam com a proteção dos governos de onde migram e onde buscam acolhimento. São caracterizados como migrantes forçados, por se deslocarem de seu local de origem em busca de sobrevivência, sem escolha entre ir ou permanecer.
A crise do clima é uma crise de direitos humanos sem precedentes. O Brasil tem, hoje, já mapeadas pela Defesa Civil Nacional e pelo Serviço Geológico, 14 mil áreas de perigo de deslizamentos e inundações, pontos de risco de desastre e quatro milhões de pessoas morando nessas áreas. Desses 4 milhões, centenas de milhares serão forçadas a se deslocar, sem recursos para se adaptar a um ambiente cada vez mais hostil. O Estado tem papel crucial no que se refere à mitigação de eventos climáticos extremos e à migração segura de grupos afetados. No entanto, na maioria esmagadora dos casos, a omissão do Estado diante do tema tem contribuído para o agravamento do problema.
O descaso em abordar o deslocamento climático assume várias formas: falha na implementação de políticas e programas destinados a reduzir os danos de eventos climáticos extremos; planejamento inadequado para a redução e preparação de riscos de desastres; negligência em fornecer apoio, auxílio financeiro e proteção adequados às pessoas e comunidades deslocadas; falta de implementação de políticas de deslocamento planejadas e bem geridas. Isso leva a uma situação em que muitas pessoas são forçadas a deixar as suas casas devido aos impactos das mudanças climáticas sem qualquer apoio ou proteção governamental. Em fevereiro de 2022, Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, minha cidade natal, foi o cenário do pior desastre causado pelas chuvas na cidade. Morreram mais de 230 pessoas, além de quatro mil desabrigados e algumas centenas de deslocados climáticos, incluindo eu, que vos escreve. Enquanto o local em que eu morava enchia até o segundo andar, o morro da oficina e outras comunidades periféricas vinham abaixo.
Carros e ônibus com pessoas dentro foram arrastados pela água, num completo pavor e impotência de vivenciar um evento climático extremo. Após o 15 de fevereiro, data da tragédia, fui forçada a migrar para outro estado. Não havia mais condições de permanecer no apartamento em que vivia, que foi muito afetado estruturalmente e corria o risco de novas inundações, o que ocorreu alguns dias depois. Eu e minha família nunca recebemos nenhum apoio do Estado, repito, NENHUM, passando a integrar a categoria de “deslocados climáticos”.
Das 358 mil pessoas desalojadas no Brasil entre 2019 e 2020, segundo dados da Lei.A, que é um observatório de leis, projetos de lei, temas e discussões ambientais, voltado a ampliar o controle social por meio da comunicação, 75% foram vítimas das chuvas de verão. A maioria esmagadora, sem opções, é forçada a se deslocar, conforme cálculos do IDMC (Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno). Com base nos dados do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres, durante o mês de outubro de 2022, 96 pessoas foram deslocadas pela seca no estado do Piauí; 90 pessoas foram deslocadas pelo mesmo motivo em Pernambuco; 1,3 mil pessoas foram deslocadas pelas enchentes e inundações no Rio Grande do Sul, além dos 760 deslocados pelos deslizamentos e enchentes nas cidades do interior do Rio de Janeiro.
Segundo o livro “Deslocados Ambientais”, de Marcos Galli, publicado em 2022, até a data da publicação não existia definição jurídica sobre os deslocados e qual seria o regime de proteção de direitos ao qual estariam sujeitos. Diante da ausência de norma reguladora, observa-se duas vertentes teóricas na busca pela resolução do problema: a categorização dos deslocados como uma nova forma de migração, dotando-os de personalidade jurídica própria; ou a vinculação normativa emergencial com legislação preexistente, enquadrando-os como refugiados, utilizando, para tanto, a definição ampliada de refúgio. Até o momento presente, ainda não há definição jurídica.
A matéria especial da Lei.A Observatório, de 2019, traz dados de que são estimadas 33,4 milhões de novas vítimas de deslocamentos climáticos forçados no mundo. Mas quem são essas pessoas? São os deslocados climáticos internos (que não cruzaram as fronteiras geográficas de um país), os refugiados internacionais (que cruzaram fronteiras) e os deslocados por alteração no meio ambiente em que viviam, independentemente de a causa ter sido natural (como terremotos e tsunamis) ou antrópica (como nos desastres de Mariana e Brumadinho).
No Brasil, temos o NEPDA (Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Deslocados Ambientais). O conheci logo após a tragédia de Petrópolis. O Núcleo nasceu para categorizá-los, mapear seus locais de origem e de destino, analisar os conflitos surgidos em decorrência do deslocamento e as questões de segurança (humana, estatal e ambiental) envolvidas, além de examinar a proteção concedida aos deslocados e as políticas públicas adotadas, em nível doméstico e internacional, comparando as diversas formas de apoio e os atores envolvidos no processo.
Fica evidente que precisamos de definição jurídica e de legislação para garantir os direitos fundamentais aos deslocados e refugiados climáticos/ ambientais. Segundo dados da ACNUR, na última década, eventos climáticos resultaram em uma média de 21,5 milhões de novos deslocamentos a cada ano, mais do que o dobro dos deslocamentos causados por conflito e violência.
As causas e os efeitos do deslocamento climático
O processo de desenvolvimento das cidades carrega em si uma lógica desigual e racista, expulsando as populações historicamente negligenciadas (comunidades negra, indígena, quilombola) das zonas mais seguras, forçando-as a habitar áreas de risco. Eventos climáticos extremos evidenciam a faceta mais grave do racismo ambiental, termo cunhado por Benjamin Chavis Jr. na década de 1980, o qual retrata como as etnias marginalizadas são expostas a eventos ambientais nocivos.
Além dos problemas conhecidos, como pobreza extrema, insegurança alimentar, falta de saneamento básico, saúde, água e acesso a recursos naturais vitais, bem como exposição frequente a inundações e secas recorrentes, as comunidades negra, indígena e quilombola enfrentam o desafio crítico da falta de moradia. O direito à moradia digna é um direito fundamental que é sistematicamente violado, levando a mais desigualdade e injustiça. Além disso, a falta de demarcação de terras indígenas e quilombolas é um outro exemplo de racismo ambiental, que perpetua a exclusão e a marginalização dessas comunidades.
A região nordeste do Brasil enfrenta o desafio da seca, que tem causado graves danos à agricultura, pecuária e abastecimento de água. Esta questão tem feito com que numerosos indivíduos da região se desloquem para diferentes áreas em busca de melhores condições de vida. Infelizmente, as mudanças climáticas exacerbam esse problema, causando secas mais frequentes e severas.
As comunidades indígenas também se deslocam devido ao impacto das mudanças climáticas. Algumas etnias (Korubo, do Vale do Javari, Uru Eu Wau Wau e outras), geralmente localizadas em áreas remotas, dependem exclusivamente dos recursos naturais de seus arredores para sobreviver. No entanto, as mudanças climáticas, o desmatamento e o garimpo ilegal ameaçam esses recursos (como vimos recentemente o genocídio do povo Yanomami), levando comunidades a se deslocarem em busca de novas fontes de alimentos, água e outros itens essenciais. Lidar com o deslocamento climático requer uma gama de ações, que atendam às necessidades imediatas das comunidades afetadas e enfrentem as causas profundas das mudanças climáticas. Aqui estão alguns insights que podem ajudar:
- Política de habitação digna: é necessário que haja articulação do governo federal, estados e municípios, unindo esforços para implementar uma política de moradia digna; políticas públicas que priorizem a oferta de moradias seguras para os quatro milhões que vivem em condições de vulnerabilidade social nas mais de 14 mil áreas de risco no Brasil.
- Mitigar os impactos das mudanças climáticas: reduzir as emissões de gases de efeito estufa e diminuir o ritmo das mudanças climáticas pode ajudar a prevenir futuros deslocamentos. Isso envolve uma transição para fontes de energia renováveis, mais limpas e maior eficiência energética.
- Proteções legais: fornecer proteção legal e apoio àqueles que são deslocados pelas mudanças climáticas, ajudar a garantir que seus direitos sejam respeitados e suas necessidades atendidas. Isso envolve a criação de novos marcos legais que reconheçam o deslocamento climático como uma forma de migração forçada e garantam o acesso a recursos legais e compensações para os afetados.
- Dados e monitoramento aprimorados: Melhorar a coleta e o monitoramento de dados pode ajudar a identificar a extensão e a natureza do deslocamento climático e informar as decisões políticas e de planejamento. Isso pode envolver o desenvolvimento de novas ferramentas e métodos para rastrear o deslocamento, como imagens de satélite e tecnologias de sensoriamento remoto.
- Soluções lideradas pela comunidade: fornecer apoio a projetos de adaptação e mitigação liderados pelas comunidades, bem como a promoção de processos participativos de tomada de decisão.
Lidar com o deslocamento climático requer uma abordagem multifacetada, que aborde as causas profundas da mudança climática e suas intersecções com o racismo ambiental e a justiça social, fornecendo proteção legal e social para as comunidades e os grupos mais diretamente e desproporcionalmente afetados.