No último domingo, 27 de junho de 2021, tivemos mais uma Feira Solidária na Feira da Roça em Vargem Grande. Seguimos atendendo mais de 30 famílias de Cascatinha, Santa Luzia, Cambungui e Bica, graças aos recursos disponibilizados pela Rede Ecológica, pela Teia de Solidariedade da Zona Oeste e pela própria Feira da Roça, bem como pelo trabalho voluntário de uma equipe de articuladoras que vem crescendo a cada encontro.
O que diferencia nosso trabalho de uma ação puramente assistencialista é a nossa prática e nosso horizonte estratégico. Do ponto de vista da nossa prática, é importante ressaltar que toda a logística de distribuição desses alimentos frescos está ancorada na organização popular e comunitária sob forte protagonismo das mulheres. Temos ainda um recorte interseccional que nos leva a priorizar tanto do ponto de vista de quem produz, quanto de quem recebe, quanto de quem atua como articuladora no território, negros e negras porque entendemos que essas são as pessoas mais afetadas pelo racismo estrutural vigente. Isso não impede que mulheres brancas antirracistas, que famílias brancas pobres e que agricultores brancos também sejam contemplados por nossas ações ou participem dessa construção. Mas quando trazemos esse recorte interseccional e essa priorização, dialogamos com uma realidade social que não pode ser ignorada, tal como demonstrado por inúmeras pesquisas: quem mais morre de fome, de bala e de covid, quem se encontra em maior vulnerabilidade nesse país são as famílias negras, sobretudo aquelas chefiadas por mulheres negras.
Nesse sentido, nosso horizonte estratégico dialoga com duas dimensões fundamentais: uma é a de movimentar as mulheres negras a partir de nossa organização popular compreendendo que, tal como anunciado por Angela Davis, “quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”; em segundo lugar, está a perspectiva de construção de um caminho que avance para a soberania alimentar e geração de renda nos territórios. Em relação a esse aspecto, já comentamos em outras ocasiões, nossa intenção de avançar na construção de hortas comunitárias nos territórios, na associação de moradores, no posto de saúde, nas lajes, nos terrenos baldios e onde mais possamos desenvolver uma agricultura urbana baseada na agroecologia, que se utilize dos saberes populares e tradicionais para produzir o alimento que tanto necessitamos, sem uso de veneno, nem agrotóxicos. Há também a expectativa de realização de oficinas que possam contribuir na geração de renda para essas famílias através de intercâmbios culinários, de produção de sabão a partir do reaproveitamento do óleo de cozinha, de costura de absorventes de pano, entre outras.
Para tanto, seguimos captando recursos nas campanhas de doações, mas também vamos consolidando parcerias e, cada vez mais, escrevendo nossos próprios projetos para que esses recursos cheguem de fato nos territórios via auto-organização popular. Dentre os parceiros mais potentes que têm caminhado segundo os mesmos princípios e horizonte estratégico que nós, está o Centro de Integração na Serra da Misericórdia/CEM. Re(encontrar) na Feira nossa querida Ana Santos, liderança comunitária que atua no Complexo da Penha disseminando a agroecologia na favela sob os eixos da educação, cidadania e soberania alimentar, só ampliou a potência dessa rede que estamos construindo já há muito tempo. Falamos sobre a importância de fortalecermos nosso intercâmbio e nossas trocas, principalmente na cozinha, pois é ali onde a revolução acontece. Apontamos para o dia 27 de julho a possibilidade de fazermos uma ação conjunta unindo agricultores, as famílias da Feira Solidária e as articuladoras dos diversos territórios que compõem essa rede com todos os cuidados que esta pandemia ainda exige.
Por fim, na onda ainda de ecoar as vozes que dão corpo a tudo isso que estamos construindo na base, compartilhamos um relato da entrevista que realizamos com Dona Sonia de Cascatinha. Dona Sonia é a expressão personificada de como os nossos passos vêm de loooooonge. A solidariedade é uma dimensão constitutiva das periferias. É aquele “nós por nós” que, no final, garante a sobrevivência de muitas famílias. Estar no front de distribuição, na produção das cestas de frescos, garantir que o alimento dê para todo mundo e que todo mundo tenha uma cesta digna, fazer a listagem, identificar as famílias que estão sob maior vulnerabilidade, equilibrar demandas, alcançar as famílias que estão mais escondidas, fazer os recortes de gênero, raça, nada disso é simples. E Dona Sonia tem sido uma escola.
Imagem: Acervo Teia de Solidariedade Zona Oeste
Ela conta como sua trajetória junto com a igreja contribuiu para que ela atuasse em várias ações de solidariedade acumulando muita experiência. Nos anos 1990, junto com os grupos vicentinos, em Cascatinha, chegou a trabalhar na assistência a mais de 300 famílias, distribuindo cesta básica, visitando a casa das pessoas, conhecendo sua realidade. Na associação de moradores, trabalhou com idosos, atendendo suas necessidades mais específicas. Por muitos anos, tirou da própria casa e já compartilhou com muita gente. Porém, depois de morar um período fora, em São Pedro da Aldeia, e de ter sobrevivido a dois enfartes, afastou-se por um período dessas ações e voltou agora, graças a um convite que recebeu da Teia de Solidariedade da Zona Oeste para atuar na distribuição de alimentos durante da pandemia. Acometida por vários problemas pessoais desde 2018, viu nessa ação de solidariedade um sentido e um alento para sua vida.
“Quando a Silvia me chamou, eu aceitei participar e fiquei muito agradecida. Aqui eu esqueço um pouco dos meus problemas, estou fazendo uma coisa que eu gosto. Cada dia que passa alguém chega na minha casa me procurando precisando de cesta. E a gente vê que as pessoas estão precisando mesmo. Aí eu vou, escrevo o nome das pessoas que estão precisando, seleciono aqueles que estão precisando mais e faço a distribuição”.
Na hora de produzir as cestas, D. Sonia tem a sensibilidade de perceber que as famílias não são iguais. Tem famílias que precisam de algumas coisas, tem famílias que precisam de outras. Tem famílias que precisam de tudo. É necessário dosar isso. Nosso desejo, como já afirmei, é que a gente chegue na moeda social para que as próprias famílias tenham autonomia de fazer suas próprias cestas sem mediação e com uma consciência solidária. Mas vamos caminhando um passo de cada vez, aprendendo com D. Sonia.
Do ponto de vista dos projetos de construção de uma horta comunitária em Cascatinha, D. Sonia explica que no território não tem lugar para isso. O pouco lugar que poderia ser utilizado, já foi murado e vai virar construção. Nesse sentido, é necessário construir outras estratégias para ocupar essas áreas com produção agroecológica e um dos projetos que queremos construir lá é o das hortas verticais em toneis, projeto lindo já desenvolvido pela Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) no nosso território e que queremos multiplicar.