Fome em tempos de pandemia

Silvia Baptista, integrante da Teia de Solidariedade Zona Oeste
Imagem: Ana Paula Campos

O telefone tocou às 8h05 da manhã em um dia calorento do verão carioca. O número era desconhecido e foi forte a tentação de não atender, podia ser um dos muitos spam’s que povoam a nossa rotina. Por acaso atendi e a voz era bem conhecida. Era uma amiga das antigas. Falávamos sempre que possível já que a geografia da moradia tinha nos separado.
Célia pediu que eu retornasse à ligação para o número antigo, que, no momento estava sem crédito, por isso usara outro telefone.

Pedi uns dez minutos para terminar uma tarefa. Depois de ouvi-la fiquei arrependida de não ter retornado a ligação de imediato. Conversamos. Recordamos momentos de ‘perrengues’ passados juntas. Lembramos um jantar na noite de natal regado a feijão, arroz e chicória e mais nada. Tempos difíceis que sedimentaram nossa relação e que a autorizava a ligar nesta altura da pandemia.

Percebi silêncios e intervalos não condizentes com nossa intimidade. Busquei deixar a minha amiga confortável. Ela conseguiu falar: “Silvia, hoje não tenho comida para o almoço das minhas filhas. Não tenho nada”.

Imagem: Ana Paula Campos

Emudeci por segundos e pareceu uma eternidade. Estávamos naquela sobra de mês em que o dinheiro começa a ficar raro. Sozinha não conseguiria resolver, mas não ando só. Sou uma mulher preta organizada e isso tem sido tudo. Graças a Teia de Solidariedade da Zona Oeste conseguimos resolver para o mesmo dia e depois inserimos minha amiga nessa organização de mulheres que consegue garantir alimento para um número cada vez maior de famílias.

Você deve estar pensando: que história banal. E, caso me falasse assim, eu te diria: concordo. É um fato muito corriqueiro e por isso mesmo assustador. Há uma repetição de histórias como a de Célia em territórios caracterizados pela desigualdade racial, como favelas, quilombos, ocupações populares, conjuntos habitacionais da periferia. Essa narrativa é uma tragédia evidenciada pela pandemia. Célia é um ícone, uma soma de muitas amigas, vizinhas e conhecidas. Representa a fome em tempos de pandemia: negra, empregada doméstica, chefe de família, com crianças e adolescentes em uma só residência.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou recentemente o consolidado da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2017 a 2018, bem antes da pandemia, portanto. Já registrava que 6,5 milhões de crianças viviam com insegurança alimentar. Indicava que “maior vulnerabilidade à restrição alimentar nas casas onde há crianças ou adolescentes”.

O mesmo inquérito demonstra que 51,9% dos lares com grave restrição alimentar, fome, são chefiadas por mulheres. No que diz respeito à raça, 58%. 1% dos domicílios com níveis altos de falta de comida regular eram chefiadas por pessoas pretas ou pardas.

Marta da Conceição Gonzaga, agricultora, plantando uma semente de uma espécie potente para pequenos espaços.

Imagem: Silvia Baptista

Mesmo com um universo de pesquisa menor e com metodologia diversa, duas outras pesquisas confirmam a tendência dos anos anteriores. Uma delas é intitulada “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil.” A segunda é denominada “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil” da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan, 2021).

Ambas confirmam que a situação da fome é mais grave em lares chefiados por mulheres e por pessoas pardas e pretas. “A Insegurança Alimentar (IA) grave das família foi maior quando esta pessoa era do sexo feminino, ou de raça/cor da pele autodeclarada preta/parda ou com menor escolaridade”. (Rede Penssan, 2021, pág. 10).

Sublinho que um importante tema levantado foi a modulação de restrição alimentar grave em famílias com 7 ou mais moradores, ou seja, em situação de coabitação – um indicador do déficit de moradia. A pesquisa identificou maior condições de fome onde havia maior número de moradores por domicílio.

As duas pesquisas foram realizadas em tempos de pandemia. Apontam o agravamento da fome e da insegurança alimentar leve. Entre as causas: a restrição alimentar grave “foi seis vezes maior quando esta pessoa estava desempregada, e quatro vezes maior entre aquelas com trabalho informal” (Rede Penssan, 2021, p. 10).

Nas soluções sugerimos dois campos de atuação: o primeiro de incidência governamental, melhor expresso na luta por renda básica emergencial junto às três esferas – municipal, estadual e federal; e o retorno dos investimentos no Programa Nacional de Alimentação Escolar, apoio à agricultura familiar e urbana. Na cidade do Rio de Janeiro é urgente a regulamentação da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan-Rio).

No campo da pesquisa, a Rede Penssan sugere a realização de inquéritos que evidenciem a territorialidade da fome. O trabalho que desenvolvem “inclui também o desenvolvimento de um aplicativo de coleta de informações sobre grupos populacionais de mais alta vulnerabilidade”. Entender onde exatamente está a fome pode contribuir para políticas municipais para enfrentar essa tragédia no nível local.

No terceiro campo de soluções estão os movimentos sociais e as redes de solidariedade que se movimentam há um ano para mitigar a epidemia da fome. Pertencem a um contexto de expansão da autonomia popular e da autogestão territorial.

Enquanto Teia de Solidariedade Zona Oeste sabemos que é uma luta que se faz de mãos dadas com os movimentos sociais do campo. Lutamos por uma reforma agrária popular. Advogamos que a soberania alimentar e hídrica seja o alicerce seguro, o chão firme, para a construção da sociedade pós-capitalista que estamos construindo. Só então venceremos a mazela da fome.

Imagem: Sany Souza

Fale conosco: mulheres.cpmzo@gmail.com

Referências bibliográficas:

Galindo, Eryka; Marco Antonio Teixeira, Melissa De Araújo et al. Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil. Food for Justice Working Paper Series, no. 4. Berlin: Food for Justice: Power, Politics, and Food Inequalities in a Bioeconomy, 2021. Disponível em

IBGE. Pesquisa de orçamentos familiares 2017-2018 : primeiros resultados / IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento. – Rio de Janeiro: IBGE, 2019.

REDE PENSSAN. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Instituto Vox Populi, 2021 – ISBN 978 65 87504 19 3. Disponível em http://olheparaafome.com.br/

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