Mães de acari: um legado histórico

Luciene Silva, integrante da Rede de Mães e Familiares de Vítimas de Violência da Baixada Fluminense (RJ) e do Radar Saúde Favela/Fiocruz
Marcha das Mães de Acari (Foto: Alaor Filho tirada da exposição Mães de Acari 30 anos)

No dia 26 de julho de 1990, uma tragédia modificou para sempre a vida de 10 mães, na comunidade de Acari, zona norte do Rio de Janeiro, trazendo sofrimento e muita dor. Jovens e adolescentes saíram para se divertir em um sítio, em Suruí, município de Magé, Baixada Fluminense, e dali foram retirados, levados por um grupo de extermínio e nunca mais encontrados.

Indignação, revolta. “Onde estão os nossos filhos? Queremos eles de volta”. Um silêncio pavoroso é o que as mães tiveram como resposta! Passaram-se 32 anos e o que se tem são investigações sem resultado, suposições que o grupo chamado Cavalos Corredores é o responsável, mas ninguém foi julgado, nem preso, nem condenado, e os corpos das vítimas jamais foram encontrados. A impunidade trouxe a indignação, que foi a motivação para que esse grupo de mães, do luto, tenha se levantado para lutar. A partir daí, as Mães de Acari ficaram conhecidas no mundo inteiro por sua determinação, coragem e ousadia de ir em busca da justiça e da memória dos filhos que sumiram, mas que jamais foram esquecidos. Algumas delas, nessa busca, perderam a própria vida._ Essas mulheres foram a inspiração para que o movimento de mães e familiares vítimas de violência do estado do Rio de Janeiro conquistasse empoderamento, ganhando autonomia para incidir politicamente, ocupando cada espaço de fala para dar voz e visibilidade a todo esse processo de adoecimento que atinge a cada uma dessas pessoas, e as deficiências e violações de direitos que são realidades em seus territórios. Essa iniciativa alcançou outros estados e assim se consolidou como um movimento nacional. Por isso, nunca poderemos nos esquecer que se as Mães de Acari não se erguessem, esse movimento jamais nasceria, cresceria e ganharia força, e muitas mães e familiares hoje estariam sem rumo e não encontrariam o apoio que necessitam para seguir na luta por justiça, por direitos e memória.

Infelizmente, após a Chacina de Acari, várias outras aconteceram em todo o estado e no país (e continuam acontecendo), não importando como, onde e nem contra quem. Vidas foram ceifadas nesses 32 anos: Chacina do Carandiru (1992), Chacina da Candelária (1993), Vigário Geral (1993), Chacina do Eldorado dos Carajás/PA (1996), Chacina do Castelinho/ SP (2002), Chacina do Borel/RJ (2003), Chacina da Via Show/RJ (2003), Chacina da Baixada/RJ (2005) e, mais recentemente, Chacina do Jacarezinho/RJ (2021) e Chacina em Manguinhos/RJ (2022). Essas são só algumas das que ganharam destaque na mídia, contudo, muitas outras aconteceram e ficaram ocultas, sem denúncia por vários motivos, principalmente, pelo medo, pelo silenciamento. Covardia? Não! Sobrevivência!

Por esse motivo, a luta que começou há 32 anos nunca pode deixar de ser lembrada, porque foi através dela que o coletivo de mães conquistou direitos, reconhecimento e autonomia em escala nacional._ Da mesma forma, após a tragédia que ficou conhecida como a “Chacina da Baixada”, em 31 de Março de 2005, quando um grupo de policiais militares passou atirando e matou 29 pessoas em uma única noite entre os municípios de Nova Iguaçu e Queimados, surgiu o movimento de mães e familiares de vítimas de violência da Baixada Fluminense, que anos mais tarde ganharia um novo nome: Rede de Mães e Familiares de Vítimas de Violência da Baixada Fluminense. Seu objetivo é continuar acolhendo, apoiando mães e familiares, ocupando os espaços para dar voz às várias formas de violências que são cometidas no território da Baixada, que tem as suas especificidades em relação à capital do estado.

Vera Flores, Marilene Lima e Patrícia Oliveira (Foto: Carlos Cruz Nobre tirada da exposição Mães de Acari 30 anos)

Essa população vive em um lugar dominado por múltiplas formas de poder armado: tráfico, milícias, grupos de extermínio, justiceiros (matadores) e violência policial, todos atuando com práticas truculentas, cruéis e abusivas. E as pessoas são obrigadas a conviver com isso.

O grupo de mães e familiares, infelizmente, cresceu ao longo desses 17 anos e as práticas das barbáries foram se modificando. Hoje, o modus operandi dos grupos criminosos que dominam a maior parte dos municípios da Baixada – as milícias – faz com que a cada dia cresçam os casos idênticos ao de Acari: desaparecimentos forçados, cada vez em maior quantidade, isso para que não se configure o homicídio, já que pela lei, dizem, não há corpo, não há prova de crime! Não há indícios, não há como se apontar o culpado. Na maioria dos casos, não há investigações, eles ficam sem respostas.

Com o passar do tempo, cada vez fica mais claro quem são os alvos dessas mortes e desaparecimentos: jovens pobres, favelados, periféricos e negros! O racismo é sim o que impulsiona a criminalização desse povo negro, dessa juventude, julgando-os sem defesa e condenando-os à morte! E pior que isso, condenando suas mães e familiares também a um sofrimento que perpassa suas vidas, trazendo consequências para a saúde mental e física, com sequelas terríveis que destroem vidas! É desumano não dar o direito a uma mãe de enterrar seu filho. Certa vez, escutei algo de uma mãe que me marcou para sempre: “Como vou acreditar que ele morreu se eu não senti seu corpo gelado? Se eu ainda sinto seu abraço quente? Só vou acreditar se eu ver ele sem vida, se eu tocar”. Como impedir as depressões, os suicídios, a perda da auto estima, as separações, a dependência química, as doenças psicossomáticas? Precisamos de cuidados!

Uma das conquistas que o movimento de mães e familiares conseguiu em Nova Iguaçu, através de incidência política, foi a aprovação da Lei municipal que instituiu a semana de 24 a 31 de março como a “Semana municipal de conscientização da luta de mães e familiares de vítimas de violência em Nova Iguaçu”, e o Decreto Lei: 12.091 de 7 de Outubro de 2020, que também instituiu o “Núcleo de atendimento a mães e familiares vítimas de violência” (NAMFIV) como atendimento psicossocial municipal, o primeiro em todo país. Expandir esse atendimento em todos os municípios da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro e em todo o país, é uma das prioridades do movimento de mães, pois é certo que o tratamento a essas famílias tem que ser específico para elas, com profissionais capacitados p ara saber diferenciar o quanto essa dor é inigualável e como não pode ser vista como outra qualquer e nem ser tratada da mesma forma. Perdemos várias companheiras e familiares nesses 32 anos. Quantos (as) mais iremos perder?

A perda de um filho assassinado se torna para uma mãe uma doença crônica, incurável. Precisa ser tratada para que seja controlada e não leve à morte!

Parem de nos matar! Nossos mortos têm voz!

Esta gostando do conteúdo? Compartilhe

Veja Também