Inicio minha narrativa com uma provocação: – Qual a importância da realização da 3ª Conferência Livre de Saúde em Manguinhos, realizadas nos dias 24 e 31 de julho de 2021? Dar um grito, politicamente falando, em defesa da vida! Covid, políticas econômicas desastrosas, violações de direitos, dentre outras séries de questões, estão adoecendo e matando as pessoas nas favelas e também em Manguinhos! É importante termos “vozes que clamam no deserto” como fora o saudoso São João Batista apregoado na tradição Cristã!
Presencial ou remoto? A experiência remota diante da gravidade da Covid e frente ao baixo número de vacinados e tal, sem dúvida, foi uma escolha adequada, mesmo sabendo que alguns ativistas do território não puderam se fazer presentes de maneira plena. O acesso à internet nas favelas se constitui de maneira precarizada, seja pela qualidade da conexão, seja pelo uso de um equipamento mais rudimentar! Isso sem contar que existem ainda muitos moradores que não estão familiarizados com o mundo digital… até respondem um WhatsApp, mas de maneira bem restrita.
Em um mundo ideal, montar pólos presenciais para garantir a participação dos moradores, seria o recomendável (aliás, no mundo ideal todos estaríamos vacinados contra a Covid). Entretanto, organizar pólos, significaria organizar locais ventilados com infraestrutura de internet, alimentação, suporte, banheiros, distanciamento social, etc. Para compor tais espaços, seriam necessários recursos financeiros e humanos, que para mobilizá-los, necessitaríamos de mais tempo. Algo que não tínhamos. Aliás, vale mencionar que na Biblioteca Parque, de última hora, recebemos alguns conselheiros que não possuíam acesso à internet para participar das atividades conferenciais.
Nossa conferência foi sugerida, provocada, montada e planejada a partir do Conselho Comunitário de Manguinhos (CCM) e do Conselho Gestor Intersetorial do TEIAS Manguinhos (CGI). Nas atividades e debates prévios tivemos a presença de representações da Organização Social que administra os Equipamentos de Saúde no Território bem como da CAP 3.1. Recebemos apoio da Direção da ENSP, do Centro de Saúde Escola Germano Sinval Farias e da Cooperação Social da Presidência da Fiocruz.
A data, por sua vez, fora escolhida para que a Conferência acontecesse antes de um calendário distrital, algo que não ocorreu certamente por consequência da pandemia de Covid-19. Mesmo diante das incertezas da realização de processos conferenciais institucionalizados, os moradores de Manguinhos envolvidos nos espaços de participação social entenderam que o momento era o mais adequado para refletir sobre a saúde no território, em especial, a partir dos seus processos determinadores e do horizonte de construção de políticas públicas saudáveis.
O conceito de políticas públicas saudáveis e sustentáveis vem de um entendimento amplo do processo saúde-doença. Neste sentido, uma enquete subsidiou a escolha dos temas a serem debatidos na conferência. Dentro do questionamento de quais os principais problemas enfrentados em Manguinhos, o resultado foi: I. Saneamento e Habitação inadequados; II. Desmonte na Saúde; III. Desemprego; IV. Violências. Para cada uma destas questões,
segundo os moradores que participaram da Conferência, a resolução dos problemas perpassa indubitavelmente pela ação de políticas públicas formuladas e construídas com a participação social.
Os termos “saudáveis” e “sustentáveis” podem servir como pistas para nortear o escopo, formas de ação e indicadores de avaliação!
Na sua realização, cabe destacar que a dinâmica participativa deve ser pensada para garantir equilíbrio de forças, clareza das regras e um canal para formulação de estratégia para ação. Essa questão, no meu entendimento, foi central, não apenas para a Conferência Livre de Manguinhos, mas também para outros espaços de participação. No plano estrutural já apontei a questão da Internet, mas poderia acrescentar que nem todos possuem um turno semanal disponível para participar de eventos comunitários e atividades dos conselhos, mesmo os envolvidos em movimentos populares e comunitários. No plano político, não podemos nos esquecer das teias dos poderes do clientelismo e da troca de favores entre certas lideranças e políticos, bem como das ramificações do poder dos grupos que controlam o território pela força das armas. Também sinalizo sobre as cooptações, que existem, inclusive, por parte da Academia que, sob a bandeira de “construir juntos”, engole e pauta certos segmentos da luta social.
Apesar de tudo, acho que a Conferência foi um sucesso, dentro das possibilidades existentes. Conseguiu pôr na esfera pública local debates importantes. É preciso agora levá-los a outras instâncias, e quem sabe, provocar para que outras conferências livres ocorram na cidade. Por que não? Imaginemos uma rede de conferências livres, ecoando as vozes dos territórios de favelas!
O próximo passo é avançarmos na construção de um relatório final e sua publicização. Também existe uma comissão construindo um documento que ficaria com o nome “Carta Manguinhos Pela vida 2021”. Estes documentos são importantes na dimensão política e não podem ser “deixados pra trás”. Outro passo importante é construirmos um processo eleitoral do Conselho Gestor Intersetorial (CGI), ao mesmo tempo popular e pedagógico, avançando numa lógica de “oxigenação” deste espaço, inclusive repensando seus objetivos, mecanismos de governança e linhas de ação junto ao território. Também não podemos deixar de avaliar internamente a realização desta conferência livre e nos preparamos para a próxima, inclusive com a possibilidade de ampliar o raio territorial do seu alcance (tipo, Manguinhos e Maré, por exemplo). O SUS sofre ataques diários. Fortalecer a Gestão Participativa, inclusive no nível local, é fortalecer a democracia e possibilitar – ainda que por um caminho longo e árduo – a construção de um SUS forte, público, equânime e promotor da vida! Viva o SUS!