Em uma sociedade que historicamente insiste em invisibilizar a mulher preta e pobre, Carolina Maria de Jesus (2014) um dia afirmou que “a maior superação nesse mundo é ser amável.” Uma das formas de amar é ver. É ouvir sinceramente o que temos a dizer.
Nesta perspectiva, nasce o Coletivo Semeando Sorrisos. Um projeto que começa em 2011 com um trabalho de atendimento às famílias em situação de vulnerabilidade social em Queimados/RJ e fortalece suas ações durante as enchentes que assolaram a Baixada Fluminense, em 2013. As atividades, na perspectiva do autocuidado, eram: maquiagem, cabelo, turbantes, tranças, roda de terapia comunitária integrativa, bazar solidário, dentre outras. Era preciso dar uma salto e, aliadas ao conceito de “pedagogia engajada” de bell hooks¹ (2017), formamos uma parceria com algumas instituições e passamos a organizar rodas de conversas mensais. Nosso objetivo inicial era analisar criticamente a situação de múltiplas violências que nós mulheres vivemos na cidade, buscando perceber como a experiência compartilhada entre elas “trabalhava para explicar a mágoa e fazê-la ir embora” (Lucinda, 2016), transformando lágrimas em ações de impacto no território.
¹ A escritora usava bell hooks em minúsculo como forma de enfatizar, segundo ela, a escrita e não a pessoa, a “substância de seus livros, não quem eu sou”.
Assim, como muitas mulheres ainda não eram alfabetizadas e tantas outras estavam em processo de letramento literário, formou-se uma turma de Educação de Jovens e Adultos no bairro São Roque, na Igreja do Evangelho Quadrangular, e o que seria inicialmente uma atividade da turma sobre o conceito de escrevivência de Conceição Evaristo (2019), tomou uma dimensão tão significativa, configurando-se em um encontro mensal de estudo.
Nestes encontros, fomos apresentadas à literatura de autoria de mulheres negras. Também discutíamos empoderamento, cidadania, afroafetos, territorialidade, antirracismo e outros. Toda a movimentação abriu uma reflexão sobre o quanto seria importante que os textos dessas mulheres fossem publicados. Desta maneira, como pedagoga voluntária do Coletivo e neta de Dona Irene (uma lavadeira respeitada na cidade), lancei-me ao desafio de reunir os escritos, convocá-las e organizar uma coletânea chamada Mulheres do Ler (Cunha, 2020). O projeto integrou não só as mulheres das oficinas, mas agregou vozes potentes da cidade que devido à sua atuação e trajetória em diversos espaços formativos, como escolas, igrejas, universidades, terreiros, empregadas domésticas, contadoras de histórias, dentre outros, já tinham um fio pra entrelaçar nessa tessitura.
A ideia se fortaleceu de uma forma tão incrível, que muitas mulheres tiveram seus livros autorais, publicaram artigos sobre o trabalho, apresentaram seminários e iniciaram, em meio ao isolamento social, um movimento de rodas de conversas online, objetivando propor um diálogo sobre a importância da escrita feminina e o fortalecimento das ações em rede. Uma delas nos levou à XXI Bienal Internacional do Livro no Rio de Janeiro em 2021. Reescrevendo aquele espaço elitista e branco com os nossos corpos-textos. Aquele espaço nunca mais será o mesmo. É isso que acontece quando uma mulher preta se movimenta (Davis, 2018).
Aprendemos que é através do pronunciamento que os homens vão existindo e nutrindo a sua humanidade. Cada vez que o ser humano se pronuncia no mundo, modifica-o. Os sujeitos, fora da relação de dominação, falam a sua palavra, comprometem-se com a sua causa e isso é um ato de coragem (Freire, 1996).
Imagem por: Veronica Cunha
Carolina Maria de Jesus (2014) um dia disse que não gostava do mundo como ele era e que iria transformá-lo. Nós também não gostamos. Modificá-lo tem sido o nosso desafio. Fazendo perguntas, pesquisando, lendo, ainda que a asfixia social seja uma barreira cotidiana para quem nasce mulher, preta e pobre (Carneiro, 2020).
Somos mulheres e não nos limitamos para caber nos padrões impostos pela sociedade. As ações construídas coletivamente mostra-nos que, a medida que temos a nossa autoestima fortalecida, podemos fazer muito mais por nós mesmas e pela nossa comunidade. A integração dessas mulheres foi fundamental para que pudéssemos passar por este momento pandêmico terrível. A arte literária tecida foi o agasalho que a alma recebeu em dias frios de desesperança. As Mulheres do Ler se transformaram num coletivo potente que se reuniu virtualmente nos anos de 2020 e 2021. O grupo efetivamente compreendeu o engajamento. Foram 2 anos onde pudemos ressignificar aquilo que realmente nos alimentava. Precisamos de arte, cultura e literatura.
Os lançamentos das publicações (volumes 1 e 2) também foram marcos na história de cada integrante. As escrevivências de todas e de cada poesia reverberava e tirava meninas-mulheres dos quartos de despejo da vida. É preciso que ouçamos o que as mulheres têm a dizer. O diálogo entre as autoras Carolina Marta de Jesus, Conceição Evaristo e bell hooks permitiu que fosse criado um incômodo. A provocação para uma educação literária que saia dos moldes da casa-grande. Não desejamos mais uma história silenciada, um não dito.
Dia 30 de abril foi o Dia da Baixada e o terceiro volume do livro Mulheres do Ler foi lançado. É uma edição especial sob o tema: “Amar é um ato de coragem”, inspirado no livro Tudo sobre o Amor de bell hooks. É a primeira vez que o Coletivo recebe um incentivo da Lei Aldir Blanc de incentivo à cultura. A obra reúne cerca de 70 mulheres da Baixada Fluminense, do Rio de Janeiro, de outros estados do Brasil e até da Suíça, onde hoje reside a artista plástica queimadense Yones Malacrida.
É um orgulho mostrarmos que o nosso território tem muito mais que carências. Ele tem potências! O que faltam são oportunidades. Essas mulheres redesenham coletivamente o conceito de pedagogia da teia e, neste movimento lindo, vamos sendo Mulheres do Ler, do fazer e do que quisermos ser (Cunha, 2021).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Carneiro, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020.
Cunha, Veronica (Org.). Mulheres do Ler. Rio de Janeiro: Conexão 7, 2020.
Cunha, Veronica. Dos Jardins da Fiocruz aos corredores de uma escola pública na Baixada Fluminense: repensando os conceitos de educação e trabalho na Educação de Jovens e Adultos em Queimados. Rio de Janeiro: Editora Conexão 7, 2021.
Davis, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018.
Evaristo, Conceição. Olhos d’água. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Pallas,2019.
Freire, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à pratica educativa. 4ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
Hooks, Bell. Ensinando a transgredir: a educação come prática da liberdade. 2ª edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.
Jesus, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. 10ª ed.São Paulo: Ática, 2014.
Lucinda, Elisa. Vozes guardadas. 1ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2016.