Nos querem visíveis pela nossa dor, mas exigimos de volta o nosso direito de sonhar: retrato autobiográfico da comunidade trans brasileira

Gab Van é homem trans preto, articulador político-social,defensor dos direitos humanos, comunicador e produtor cultural.

O dossiê anual da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), publicado em 2022, mostra, pelo 14º ano consecutivo, que o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo; essa é a frase que mais se popularizou no senso comum quando se faz referência à comunidade trans e travesti. No entanto, a discussão pouco se desdobra e pouco permite destacar tecnologias de sobrevivência e de existência entre nós. O Brasil não mata nossa comunidade apenas por homicídio. Nos matam também por suicídio, por negligência, por invisibilização, por transfobia médica e por tantas outras tragédias anunciadas.

Durante a pandemia de Covid-19, tivemos a comprovação de uma realidade que nós, da comunidade trans, conhecemos muito intrinsecamente. Ainda de acordo com o dossiê da ANTRA, os assassinatos de mulheres trans, travestis, homens trans e pessoas transmasculinas aumentaram 43% em 2020, o primeiro ano pandêmico, contrariando as expectativas de especialistas, que projetavam que este número iria decrescer, devido ao isolamento social.

O aumento, no entanto, se dá porque é justamente dentro das famílias que se inicia a violência de gênero, com espancamentos, torturas psicológicas, privações, internações compulsórias em colônias de “cura gay”, estupros corretivos em homens trans. Devido a esse contexto, o que vemos é a extrema vulnerabilização da nossa população que, infelizmente, vê nas ruas, na prostituição e em relações abusivas as suas válvulas de escape.

Avanços e desafios

Em 2022, pela primeira vez em 150 anos de existência da pesquisa no Brasil, o censo demográfico realizado pelo IBGE estimou o tamanho da população trans, travesti e não binárie do país, através do mapeamento da identidade de gênero dos respondentes. A atual falta de dados oficiais influencia diretamente a negligência do Estado no que diz respeito às políticas públicas específicas para a nossa comunidade.

Apesar do esforço de invisibilização e sequestro dos nossos direitos, a luta de travestis e mulheres trans das décadas de 1980 e 1990 – precursoras do movimento LGBTI+ – abriu caminhos para comemorarmos algumas vitórias hoje; por exemplo:

Retificação do nome e gênero em documentos:

  • Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que pessoas trans têm o direito de alterar seu nome e gênero nos registros civis sem a necessidade de cirurgia de redesignação sexual, avaliação psicológica ou qualquer outro tipo de intervenção judicial, para pessoas trans binárias.

Lei Maria da Penha:

O STF, em 2019, também determinou que a Lei Maria da Penha, originalmente criada para proteger mulheres cisgênero de violência doméstica, se aplica igualmente a mulheres transexuais e travestis.

Inclusão no Sistema Único de Saúde (SUS):

  • Desde 2008, o SUS oferece tratamento gratuito para transexuais, incluindo terapias hormonais e, em alguns casos, cirurgias de redesignação sexual. Esta inclusão foi estabelecida pela Portaria nº 457, que define e estabelece diretrizes para o processo transexualizador.

Proteção contra a discriminação:

  • Em 2019, o STF criminalizou a homofobia e a transfobia, equiparando-as ao crime de racismo. Esta decisão significa que discriminação e atos violentos contra pessoas trans e travestis podem resultar em penalidades judiciais.

Nome Social:

  • Em 2016, o Decreto nº 8.727 estabeleceu que órgãos e entidades da administração pública federal devem respeitar e garantir o direito ao uso do nome social e ao reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais.

Alocação em presídios:

  • A Resolução nº 09, de 2011, do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoções dos Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais estabelece parâmetros de acolhimento de pessoas LGBT em privação de liberdade no Brasil. Entre outras coisas, essa resolução busca garantir que pessoas trans sejam alocadas em unidades prisionais conforme sua identidade de gênero.

No entanto, na prática, o que vivenciamos é o descaso e a recorrente tentativa de anular o mínimo de cidadania que nos foi garantida por lei. A realidade do atendimento geral de saúde é de longas filas, pouca transparência na regulação das vagas para cirurgias e acompanhamentos do processo transexualizador. Poucas cidades oferecem acesso gratuito à hormonização, além de profissionais despreparados e muita discriminação. Especificamente para transmasculinidades, o impacto mais grave é no atendimento de ginecologia e obstetrícia. Ter homens menstruando e parindo desafia a transfobia médica no seu limite.

Na educação, apesar da garantia jurídica do nome social, a taxa de evasão escolar é altíssima, devido à transfobia por parte de professores, funcionários e demais estudantes. Uma pesquisa realizada pela ANTRA, em 2018, revelou que cerca de 72% das pessoas trans não têm Ensino Médio, enquanto nas universidades, a presença de pessoas trans é de somente 0,02%. Este cenário reduz as oportunidades futuras e amplia a vulnerabilidade socioeconômica da nossa população.

Foto: Acervo pessoal Gab Van

Saúde mental e resistência

Embora os dados completos sobre suicídio na população trans e travesti sejam escassos, os números disponíveis são alarmantes. Pesquisas indicam que a tentativa de suicídio entre mulheres trans, travestis, homens trans e pessoas transmasculinas é significativamente maior do que na população cisgênero. Esta triste realidade, muitas vezes, resulta de uma combinação de fatores, incluindo discriminação, violência, rejeição familiar e falta de acesso a cuidados de saúde. Quando adicionamos o fator raça, vemos a taxa de suicídio aumentar em mais 50%.

A expulsão de casa, a violência psicológica ou física dentro das famílias, a evasão escolar, a baixa empregabilidade, a falta de moradia, a discriminação diária pelo erro de pronomes e gêneros ou pela expulsão de espaços públicos, somado à raça, que resulta em maior violência obstétrica – para homens trans e pessoas transmasculinas que gestam e parem –, além da maior probabilidade de abuso moral e sexual pelas forças de Segurança Pública, entre outros fatores, são determinantes para o sofrimento mental da nossa população. O acesso ao acompanhamento psicoterapêutico e psiquiátrico não é uma realidade. Quando nossas pessoas têm a chance de acessar esses serviços, na maioria das vezes, encontram profissionais desqualificados, que cometem transfobias em diversos níveis e que insistem em nos encaixar em um CID (Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde).

Nesse sentido, é de extrema importância o coletivo. Diante do quadro de falta de apoio e vulnerabilização social, muitas vezes, é na militância que as pessoas trans encontram acolhimento e cuidado.

Foto: Acervo pessoal Gab Van

A interseção entre encarceramento e identidade de gênero

Sabe-se que o Brasil possui uma das maiores populações carcerárias do mundo. Nesse contexto, pessoas trans representam, em dados notificados – aqui é importante relembrar que a subnotificação é um projeto político –, cerca de 2 mil pessoas, de acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional de 2020. Apesar de existirem pactos internacionais e legislação nacional que garantam o mínimo de dignidade dessas pessoas, a tortura física e psicológica da nossa comunidade no cárcere é dolorosa. Muitas vezes, mulheres trans e travestis são colocadas em prisões masculinas, tornando-se vulneráveis a violências físicas e sexuais, enquanto homens trans são encarcerados em presídios femininos.

A princípio, o que funciona na prática das prisões brasileiras, nos lugares em que alguma dignidade ainda é respeitada, é ter alas para pessoas trans, nas quais homens trans, em prisões masculinas, ficariam somente com homens trans, e mulheres trans e travestis cumpririam suas penas apenas entre si. Sabemos que essa realidade é exceção. Adicionalmente, o acesso à saúde dentro das instituições prisionais é precário para todos os detentos, mas é ainda mais deficiente para pessoas trans. Medicações para hormonioterapia, por exemplo, raramente são disponibilizadas. Procedimentos específicos são quase inexistentes.

A pobreza menstrual, quando pautada para mulheres cis encarceradas, já representa uma demanda urgente, mas quando transpomos essa realidade para homens trans e pessoas transmasculinas privadas de liberdade, que têm, muitas vezes, somada a disforia com a menstruação, ela se torna ainda mais sensível e mais distante dos olhares do Estado.

Foto: Acervo pessoal Gab Van

Não somos as nossas dores

O panorama de acesso a direitos da nossa população não é muito animador. O Estado ausente, a força da bancada conservadora religiosa no congresso, a influência das igrejas cristãs nas famílias, e tantos outros fatores, tornam nossa realidade palpável através das nossas dores, no entanto, mulheres trans, travestis, homens trans e pessoas transmasculinas são potência e inovação. Nos reduzir ao que a sociedade faz de nós é uma forma de transfobia e um desperdício de toda a pluralidade e capacidade que podemos expressar.

Mulheres trans e travestis, especialmente negras e indígenas, foram as que sonharam a sociedade que temos hoje e que lutaram para que a humanidade da nossa comunidade fosse reconhecida. Foram elas que desafiaram as noções de gênero, que pautaram que existe muito além da normatividade, que sobreviveram e exigiram que ouvissem suas vozes. Para que hoje possamos ter mulheres e homens trans parlamentares, cantoras e cantores, pesquisadoras e pesquisadores, atores e atrizes, escritoras e escritores, criadores de conteúdo, cineastas e roteiristas ocupando seus espaços, é porque os caminhos foram abertos antes.

Nesse contexto, se inserem, também, eventos como a Marcha Trans e Travesti do Rio de Janeiro, a ocupação que fizemos da praia do Leme em janeiro de 2023, mês da visibilidade trans, toda a cultura ballroom, ações públicas de requalificação civil: é nesses encontros que exigimos nosso espaço, que amplificamos nossas vozes e sonhamos, enquanto coletivo, a realidade dos que estão chegando. Mulheres trans, travestis, homens trans e pessoas transmasculinas têm tecnologias ancestrais de construção de realidade e sobrevivência e é dessa criatividade, de imaginar e realizar uma sociedade do zero, que vem a nossa potência de inovação.

Conclusão

O Brasil tem o dever moral e legal de garantir que todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero, tenham seus direitos respeitados e acesso a cuidados adequados. Em uma nação que se orgulha de sua diversidade, é imperativo que essa inclusão se reflita em políticas públicas efetivas e humanizadas. É essencial compreender que nossas narrativas não são apenas de luta, mas também de potência, resiliência e realização. A garantia de direitos e acessos para nossa comunidade não é apenas uma questão de justiça social, mas também uma oportunidade de a sociedade como um todo se beneficiar da riqueza de experiências, talentos e perspectivas que oferecemos. Reconhecer e valorizar as potências de pessoas trans é dar um passo adiante rumo a uma sociedade mais inclusiva, diversa e enriquecida em seus valores e saberes. Em última análise, promover equidade para a comunidade trans e travesti é fortalecer os próprios pilares da democracia, humanidade e progresso.

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