Mesmo após 133 anos da abolição da escravatura, a imagem das mulheres negras ocupando espaços fora da condição de subalternidade ainda provoca ódio, racismo e agressões. Por isso, para nós o grande desafio é nos mantermos vivas, carregando a nossa ancestralidade, uma vez que a política de genocídio do povo negro, tenta sistematicamente exterminar nossos corpos física e simbolicamente.
A função social, cultural, econômica e histórica que mulheres negras exercem na formação do Brasil reflete a edificação de processos muito distintos, que escondem e invisibilizam essas atuações.
O memorial Nossos Passos Vêm de Longe pintado em Duque de Caxias, para resgatar, homenageiar e valorizar a trajetória de nove Mulheres Negras: Mãe Beata de Yemonjá (1931-1917), Yalorixá de Miguel Couto em Nova Iguaçu; Maria Conga alforriada aos 35 anos e líder do Quilombo em Magé; Marielle Franco (1979-2018) vereadora negra, lésbica e favelada, assassinada na Cidade do Rio de Janeiro, é o reflexo das lutas cotidianas e do apagamento que essa parcela da sociedade é tratada. Diante de um território onde o maior número de moradores é formado por mulheres negras, que são chefes de família, trabalhadoras, lideranças comunitárias e agentes de transformação em suas famílias e vizinhança, a condição de sobrevivência é uma pauta urgente para pensarmos a emancipação pessoal e coletiva para e com mulheres negras.
Quando falamos em ancestralidade remontamos à luta contra a escravidão e a manutenção da vida em coletivo, culturas, identidades e memórias que formam um pilar sólido para nossa resistência, entretanto a Baixada Fluminense é um espaço de constante tensão que dita um ordenamento pela violência de Estado cada vez mais estruturada e difícil de ser combatida. Rememorar é também afirmar a importância que o enfrentamento tem no dia a dia, protagonizando e denunciando as ausências sistematizadas pelo Estado, que define para esses espaços a opressão, a vigilância, o medo e todo tipo de carência social.
O ato racista de pintar de branco o rosto dessas mulheres homenageadas por suas atuações coletivas pode ser visto como um reflexo desse enfrentamento constante diante das violências estruturais. Estando o racismo tão arraigado e naturalizado uma pessoa se sente confortável em praticar tal ato sem a menor vergonha nem pudor, pois ele tem a certeza que sua ação encontra ressonância em inúmeras pessoas e mais ainda, em diversas estruturas.
A rua sempre foi o espaço da negritude exercer sua construção de liberdade, ainda na escravidão o acesso à rua era uma forma direta de planejar inssureições, como também espaço de trabalho. Quituteiras, lavadeiras e rezadeiras são personalidades que estão retratadas como sempre presentes na rua. No pós-abolição, outras figuras se somaram a essas, compondo os contextos do espaço público com inventividade e ação combativa. Ainda hoje mulheres negras estão nas ruas levantando suas vozes contra o racismo, o machismo e o sexismo, assim como contra toda violência, por isso o direito à cidade para estar ilustradas nas vias públicas e muros é nosso sim.
Imagem: Acervo Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial
A liderança dessas mulheres continua inspirando a luta na Baixada Fluminense. que através de outras mulheres homenageadas, ainda em vida pela Iniciativa de Direito à Memória e Justiça Racial, tomam para si as demandas desse tempo histórico. Mulheres como Ana Leone, comunicadora popular, Fátima Monteiro, do Movimento Negro Unificado, Dona Leonor, atuante na Pastoral do Negro, Silvia Mendonça, atriz e defensora das religiões de matriz africana e Rose Cipriano professora e ativista dos direitos dos direitos humanos, integrante do Coletivo Minas Baixada, são os nomes que dão imagem para este memorial. A relação entre passado, presente e futuro é unificada pela constante luta para a liberdade da população negra e periférica. Hoje já não existem mais as máscaras de Flandres, então usaram tinta branca para destilar o racismo e manifestar as opressões instauradas pela divisão da raça, classe e cor. As mulheres negras que sempre estiveram na base da pirâmide no quesito desigualdade, inclusive no que corresponde ao lugar social do homem negro, são também as que movimentam e modificam as estruturas.
Por esse motivo nas três últimas décadas houve um acirramento das pautas de gênero e raça que colocam as mazelas produzidas pelo racismo e machismo em evidência para toda sociedade, desnudando uma construção falsa de democracia racial no Brasil e que nunca existiu, servindo como cortina de fumaça para mascarar a garantia os direitos previstos na Constituição Brasileira que, na sua ação, segue inconclusa. Direitos sociais igualitários, embora sua contribuição fortaleça o sistema econômico capitalista, pouco ou nada lhe é atribuído como benefício, por isso a luta das mulheres no século 21 incomoda muito.
O Memorial Nossos Passos Vêm de Longe retrata mulheres que além da luta sindical, educacional, territorial, política e social, podem ser identificadas por todas as mulheres pelo histórico da vida cotidiana, tão comum para as mulheres periféricas que enfrentam as mesmas adversidades impostas por essa estrutura naturalizada do Estado.
No contexto da pandemia mundial provocada pela Covid-19, vemos novamente essas mulheres no front em defesa da vida, indo às ruas protestar e denunciar o descaso do governo com a população, exigindo vacina para todos , ao mesmo tempo que fincamos a voz na defesa do SUS, atuando diretamente na captação de cestas de alimentos e produtos de higiene para socorrer a população marginalizada e abandonada pelo poder constituído. Nesse contexto, compartilhamos o entendimento de que a melhora na qualidade de vida do povo negro e periférico só se dá a partir das lutas e batalhas diárias destas mulheres, que estão garantindo a vida nos seus territórios.
Imagem: Acervo Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial
São as homenageadas pelo memorial e tantas outras mulheres ainda anônimas que fazem a diferença no enfrentamento à violência de Estado, durante este período difícil da pandemia da COVID-19.
O Brasil se forjou a partir do sangue negro e indígena e neste texto rememoramos as inúmeras mulheres negras que edificaram esta nação e seguem atuando de forma contudente contra o genocídio diversificado, acreditando que seremos capazes de refundar em bases mais igualitárias. Trazemos a memória de Katlen, Emilly e Rebecca para lembrar que não aceitaremos a política da morte definida para negros e pobres.
Somos sementes das nossas mais velhas e regamos hoje a ação combativa, acreditando em um amanhã melhor.