No início da crise sanitária, em 2020, diante das perdas de trabalho e renda e do avanço do número de infectados e mortos, a organização de sociedade civil Redes da Maré articulou, com diferentes parceiros, a criação da campanha “Maré diz NÃO ao coronavírus!”. O trabalho foi estruturado em diferentes frentes de atuação nas 16 favelas da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro, onde vivem cerca de 140 mil pessoas. Houve apoio à segurança alimentar para moradores e pessoas em situação de rua, geração de renda, cuidados e prevenção em saúde, produção e difusão de informações e conteúdos seguros e apoio a artistas e grupos culturais mareenses. O contato com as famílias impactadas por um cenário tão complexo, agravado pela falta de ação do Estado, mostrou que era hora de ir para a rua para entender também o que estava acontecendo nas escolas da região e descobrir os efeitos da pandemia na vida de estudantes da Maré, de seus responsáveis e professores. Em 2019, cerca de 20 mil alunos estavam matriculados nas 50 escolas públicas da região.
Imagem: Acervo Redes da Maré
Em parceria com o Instituto Unibanco, de março a setembro de 2020, uma equipe de pesquisadoras da Redes da Maré entrevistou cerca de mil pessoas, entre professores, alunos e seus pais, dando origem ao estudo Covid-19 e o acesso à educação nas 16 favelas da Maré: impactos nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio. Os resultados reveladores evidenciam os efeitos dramáticos da pandemia na vida escolar de toda uma geração de estudantes mareenses – que passaram quase 20 meses entre aulas remotas e híbridas – mas também de seus professores e familiares.
Ninguém saiu ileso dessa experiência inédita. Acreditamos, no entanto, que, com esses dados nas mãos, seja possível fomentar discussões junto ao poder público em busca de ações que possam diminuir o aumento da desigualdade escolar para quem mora em regiões periféricas como a Maré, onde, historicamente, os desafios para a garantia da educação de qualidade são maiores.
“Às vezes dá até vontade de desistir. Não desisti, continuei estudando, só que numa frequência bem menor do que eu estudava quando tinha as aulas.”
“Eu não consegui, eu não estudei. Eu não vou ser falso, fingir que eu fui um ótimo aluno. Eu estou boiando no 7º ano.”
Esses dois depoimentos corajosos de estudantes de escolas públicas da Maré ilustram bem um dos dados mais alarmantes da pesquisa, que mostra que os alunos têm a sensação de que perderam dois anos de aprendizagem. Quase três em cada quatro alunos entrevistados conta que aprendeu pouco (48%) ou nada (26%), somando 74% do total. Mais da metade deles − 57% − afirmou que sua vontade de estudar na pandemia diminuiu (33%) ou diminuiu muito (24%). Entre os motivos apontados pelos estudantes, estão a dificuldade de adaptação ao ensino remoto (35%) e problemas de aprendizagem (28%).
A pesquisa mostrou que 69% dos estudantes se sentiram prejudicados pelo ensino remoto, mas 62% deles disseram ter conseguido acompanhar as atividades escolares on-line. Um percentual ligeiramente menor − 57% − afirmou ter feito isso usando o aplicativo de ensino remoto da respectiva rede de ensino. Por outro lado, é muito importante observar que 38% dos alunos não conseguiram acompanhar as atividades durante a pandemia e que 43% não tenham usado o aplicativo da respectiva rede de ensino. O motivo mais citado para a não execução das atividades foi não ter entendido o que era para ser feito (43%), seguida de falta de internet (22%), falta de dispositivo eletrônico (18%), por problema emocional (15%), falta de material impresso (14%) e por causa de trabalho (8%).
O estudo também tentou dimensionar o impacto da pandemia na saúde mental da comunidade escolar e o resultado, de novo, mostra a necessidade de ação urgente do poder público. Entre os estudantes, 41%
afirmaram terem enfrentado algum tipo de sofrimento psíquico. Entre pais e responsáveis, 69% apontaram impactos na própria saúde mental emocional, e, no caso dos profissionais da educação, 72% relataram o agravamento de problemas psíquicos e emocionais.
Um terço dos profissionais afirmou ter adquirido doenças ou manifestado sintomas inexistentes antes da pandemia, como ansiedade (18%), crise de pânico (7%) e insônia (2%). Uma professora explicitou como se sentiu e o tipo de pensamentos que teve durante certa fase da pandemia: “O que eu tô fazendo aqui nessa plataforma? Estou enganando quem? Para quem eu estou ensinando? Para quê? […] Isso começou a mexer comigo, comecei a chorar, uma fase de ficar deitada, de não querer fazer nada.”
Os prejuízos não param por aí. Um jovem contou ter desistido de se matricular na escola em função da pandemia: “Eu completei o 9º ano, passei, e era para eu ter me matriculado. Mas como [teve] essa pandemia, não consegui: fechou tudo e ficou muito difícil. Então, fiquei um ano sem estudar. Só por conta própria, pesquisando, para não perder, entendeu, mas matriculado em escola não estava.”
Infelizmente, a história desse jovem não é um caso isolado. O número de crianças e adolescentes moradores da Maré que deixaram de frequentar a escola nos últimos dois anos teve um crescimento grande, como vem comprovando o projeto Busca Ativa, coordenado pela Redes da Maré, que, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação, procura alunos fora das salas de aulas. A iniciativa, instituída em janeiro de 2021, já cadastrou cerca de 1.100 crianças e adolescentes. A grande maioria vem de listas fornecidas pelas escolas públicas da Maré, mas nas visitas diárias a equipe de campo formada por seis pessoas acaba descobrindo outros tantos estudantes distantes dos bancos escolares. No entanto, os dados oficiais de evasão ainda não foram mensurados.
Finalmente, os profissionais da educação se dividiram quanto à expectativa de superação dos problemas de aprendizagem decorrentes dos quase dois anos de aulas remotas e híbridas. Pouco mais da metade (56%) acredita que será possível reverter os efeitos negativos, por meio da recuperação dos conteúdos, enquanto 44% consideram essa missão impossível. Nessa mesma direção, 45% desses profissionais preveem o aumento nos índices de evasão escolar. Para os professores, a recuperação ainda demandaria aulas de reforço (55%); engajamento comunitário e parceria família-escola (48%); estratégias criativas e busca ativa (45%); e parcerias com instituições locais (43%). Outras sugestões foram o uso de contraturno, além de maiores investimentos na escola para a redução de turmas por professor e o número de alunos por turma.
Como se vê, a pesquisa evidencia o acirramento das desigualdades educacionais de moradores da Maré. Esse cenário só poderá ser enfrentado com uma política robusta não só dos órgãos responsáveis pela educação, mas uma perspectiva intersetorial que considere a participação efetiva dos pais e das instituições locais. Um primeiro passo já foi dado num debate sobre os dados da pesquisa, realizado no Centro de Artes da Maré, no final de abril, reunindo profissionais de educação de toda a região. Espera-se agora que muito em breve crie-se um fórum para que a discussão se amplie e as ações, de fato, possam sair do papel. Esperamos que, com esse trabalho, possamos trazer à tona questões fundamentais que interferem no desenvolvimento da Maré, mas que também podem ilustrar a realidade das periferias de diferentes estados brasileiros.