Os impactos da ADPF 635 e a segunda onda da letalidade policial

Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF), Daniel Veloso Hirata, Carolina Christoph Grillo,Renato Coelho Dirk e Diogo Lyra

Quando a pandemia de Covid-19 chegou ao país em março de 2020, as operações policiais no Rio de Janeiro se encontravam num patamar de letalidade sem precedentes mesmo para os parâmetros historicamente altos desse estado. Diante do contexto de crise sanitária, particularmente agravado nas favelas fluminenses, o ministro do STF Edson Fachin aceitou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como ADPF das Favelas, que, entre outras medidas, restringiu as operações policiais nessas áreas a casos absolutamente excepcionais. Tal medida se configurou no mais importante instrumento de proteção à vida na história recente deste estado, ainda que sua aplicação tenha sido continuamente sabotada. Como veremos a seguir, o Rio de Janeiro passa por uma segunda onda de letalidade policial que, assim como a segunda onda do Covid-19, tem se mostrado ainda mais mortal.

Neste balanço, utilizamos dados oficiais produzidos pelo Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ) e dados próprios (GENI-UFF) sobre operações policiais, todos referentes à Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Em primeiro lugar, cabe destacar que, como resultado direto da ADPF 635, em 2020 houve uma redução de 59% das operações policiais em relação à 2019, apresentando a maior redução anual e o valor mais baixo dos últimos 14 anos. Em razão disso, em 2020 a letalidade policial caiu 34% com relação ao ano anterior, cessando um crescimento ininterrupto desde 2014 (313%), como é possível observar no gráfico 1. Esses números nos permitem estimar que, graças à ADPF 635, aproximadamente 300 vidas foram salvas nas favelas do Rio de Janeiro.

Gráfico 1: Mortes por intervenção de agente do Estado na RMRJ (valores médio e absoluto, 2007-2020)

Fonte: ISP-RJ

Apesar dos resultados extraordinários, a ADPF 635 foi cumprida apenas parcialmente pelas autoridades políticas e policiais do estado, que obedeceram à determinação do STF apenas de junho a setembro, como é possível constatar no gráfico 2. Nesse período, a média de operações por mês foi de 18,5. Contudo, entre outubro de 2020 e fevereiro de 2021, a média mensal de operações aumenta 86% com relação a média entre junho a setembro, chegando ao maior valor numérico no mês de janeiro, quando foram notificadas 49 operações. Na média histórica, de 2007 a 2020, esse valor é de 70,5.

Gráfico 2: Número de operações policiais na RMRJ (janeiro de 2020 a fevereiro de 2021)

Fonte: GENI\UFF

A redução das operações policiais está diretamente associada com a redução do número de mortos. Dessa maneira, se nos cinco primeiros meses do ano de 2020, a média mensal de mortos por intervenção de agentes do estado foi de 133,6 vítimas, nos primeiros quatro meses de vigência da liminar a média baixa para 37,5 vítimas e, nos cinco meses seguintes, chega a 107 vítimas ao mês. Houve, portanto, aumento de 187% da letalidade policial em relação aos quatro primeiros meses de vigência da liminar, o que evidencia o deliberado desrespeito à decisão do STF. Nesse mesmo período, os crimes contra a vida, que haviam diminuído, voltam a aumentar, vitimando 49% a mais do que nos primeiros quatro meses de vigência da liminar. Por fim, nesses primeiros quatro meses ocorreram 3 chacinas e, nos meses seguintes, 14.

Pode-se afirmar que a decisão pela suspensão das operações durante a pandemia foi a medida de defesa da vida mais importante dos últimos 14 anos no Rio de Janeiro, mas ela corre sério risco de ser esvaziada pela escolha deliberada das autoridades políticas e policiais estaduais em desrespeitar o STF. Isso nos parece grave em ao menos dois sentidos: por um lado, para o conjunto das instituições do Estado de Direito, o descumprimento de uma decisão da mais alta corte do país pelas polícias e o governador deve ser encarada como crime, e, portanto, passível de responsabilização; por outro, seus impactos serão a volta de uma política baseada em operações policiais, que já se demonstrou historicamente letal para as populações negra, pobre e residente em favelas, além de ineficaz para o controle do crime.

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