Os limites das ações comunitárias de assistência

João Luiz Pereira. Sepetiba, União Coletiva pela Zona Oeste
Imagem: União Coletiva pela Zona Oeste

Já no primeiro semestre de 2020, quando ainda estávamos no iní­cio da pandemia, as previsões e os primeiros diagnósticos à res­peito de seus impactos socioeco­nômicos eram alarmantes: como se não bastasse o péssimo ano de 2019, quando aproximadamente 170 mil brasileiros entraram na extrema pobreza, e o agravamen­to da extrema pobreza entre 2017 e 2019 (a despeito do crescimento do Produto Interno Bruto no pe­ríodo) ainda tivemos uma queda brusca na renda dos mais pobres no ano de 2020 (segundo o Data Favela e o Instituto Locomotiva, 80% dos moradores de favelas tiveram suas rendas impactadas em pelo menos 50%). Segundo Fausto Augusto Junior, Diretor Técnico do Dieese, a crise econômica que assola o país a partir de 2015 é uma das principais causas do quadro que se apresentou entre os anos de 2017 e 2019, aos problemas específicos do ano de 2019 o diretor atribui como principal causa o “estrangulamento” dos programas sociais, em es­pecial o Bolsa Família, promovido pelo Governo Bolsonaro.

Somemos à essa equação o desmanche do Sistema Único de Assis­tência Social, o SUAS, e o descrédito fruto das notícias falsa dirigidas às ONG’s e temos um problema seríssimo: um Estado ausente, equipamentos públicos de assis­tência social sucateados, políticas públicas de mitigação da miséria e redistribuição de renda perdendo força e organizações do terceiro setor, que tradicionalmente che­gam onde o Estado não vai, des­creditadas pelas falas insidiosas e criminosas de pretensos liberais que na verdade não passam de reacionários e o que teremos é o total e absoluto caos social. Mes­mo enfrentando um cenário tão desfavorável e um vírus mortal, o terceiro setor se pôs na linha de frente do combate aos impactos socioeconômicos da pandemia e bo­tou comida na mesa de milhões de brasileiros de norte a sul desse país de proporções continentais: a União Coletiva pela Zona Oeste (UCZO), ação da qual orgulhosamente faço parte desde seu início, por exem­plo, impactou positivamente a vida de 3.500 famílias em situação de extrema vulnerabilidade social, levando até elas cestas básicas, pro­dutos de limpeza e higiene pessoal, máscaras e informação.

Contra toda ineficiência e desinteresse do poder público nós do ter­ceiro setor mobilizamos recursos e vontade política para fazer aquilo que nenhum dos entes da federação fez. Imaginem o que poderia ser feito com união, estados e municípios agindo em conjunto, disponibi­lizando recursos, pessoal e equipamentos para a promoção de políti­cas públicas de bem estar e assistência social? Na data em que escre­vo o presente texto o Presidente da República mobilizou milhões em equipamentos, recursos e pessoal das Forças Armadas para promover uma suposta demonstração de força, imaginem o que todos esses re­cursos, pessoal e equipamentos não poderiam ter feito pelos brasilei­ros no momento de emergência que vivemos?

Se um grupo de coletivos da extrema Zona Oeste do Rio de Janeiro, de bairros pobres, sem muita experiência em ações de assistência social e sem grandes quantidades de recursos próprios conseguiu alcançar os números que nós conseguimos, o que um Estado presente e arti­culado em suas mais diversas instâncias de poder não poderia fazer?

Mas, ao invés disso, o que tivemos foi um Governo Federal que, desde o início da pandemia, negou sua gravidade, incentivou o desrespeito às normas sanitárias, postergou a compra de vacinas, se envolveu em escândalos de propina e se recusou à cumprir seu papel, qual seja, prestar prontamente um auxílio decente às famílias pobres e aos pe­quenos negócios; no Rio de Janeiro tivemos um governo do estado e uma prefeitura também omissos que não apresentaram políticas pú­blicas suficientemente sérias para dar vazão aos problemas que a po­pulação mais vulnerável enfrenta, o que elevou a taxa de pobreza do nosso estado, o segundo mais rico do país, de 6,4% para 10,5% duran­te a pandemia (o que significa mais 745 mil cidadãos fluminenses na pobreza, segundo dados da Fundação Getúlio Vargas). Aqui o terreno para a discussão é tão fértil que temo me aprofundar demais em tudo o que foi feito de errado pelo poder público e não falar o óbvio: nós, o terceiro setor, não podemos, por mais que tentemos, tapar todos os buracos que o poder público deixa. Vontade de fazer todo o possível não nos falta, mas até onde vão nossas possibilidades?

Imagem: acervo União Coletiva pela Zona Oeste

Já em agosto de 2020 o volume de doações recebidas pela UCZO come­çou a diminuir drasticamente, não coincidentemente foi justamente no mês de junho que as medidas de restrição das atividades econômi­cas começaram a ser intempestivamente flexibilizadas, o que leva a crer que com a retomada das atividades não-essenciais, além da fal­sa sensação de segurança, veio também a percepção de que o cená­rio socioeconômico começaria a melhorar, o que infelizmente não se confirmou: no segundo trimestre de 2020 a renda média do brasilei­ro sofreu uma brusca queda em relação ao primeiro. Foi justamente a partir desse momento de endurecimento da crise socioeconômica causada pela pandemia que nossa ação entrou em seu pior momento financeiro e logo depois precisou suspender suas ações diretas de as­sistência social. Foi então que percebemos o óbvio: nossa boa vonta­de, esforço, rede, experiência e todas outras qualidades permitiu que realizássemos um trabalho magnífico, porém o povo precisa de um Estado forte e atuante; nossos limites são diversos! Desde os limites materiais como recursos financeiros, equipamento, pessoal e espaço físico até limites “metafísicos” como nossas vidas profissionais, aca­dêmicas, familiares, nossa saúde mental, o desgaste que nossas rela­ções de camaradagem sofrem com os problemas (que não são poucos) cotidianos da militância organizada e inúmeros outros limites. En­quanto enfrentamos todas essas questões o que o poder público vem fazendo? Algumas campanhas locais de arrecadação de alimentos que terceirizam suas obrigações de promover o bem estar e a segurança alimentar da população para a sociedade civil e para o terceiro setor e, como diria minha avó, “olhe lá”…

O que precisa ser dito é simples: em tempos de crise o Estado precisa intervir pelos mais vulneráveis, pelas mães solo, pelos favelados, pe­los pobres, pelos desempregados, pelos autônomos, pelos pequenos empresários e não pelos bancos e companhias aéreas. Enquanto eles não cumprem com seu dever institucional e direcionam seus esforços à quem não precisa, o terceiro estará aqui, mesmo com todos os limi­tes, atuando e lutando pelos nossos.

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