Para além da pandemia: atuações e possibilidades de ser favela no Rio de Janeiro

Sônia Fleury, pesquisadora da Fiocruz e coordenadora do dicionário de Favelas Marielle Franco

“As pandemias trazem à tona as questões sociais. O que é uma questão social? É quando algum problema que está ligado à população, ou a alguma parte da população, ele eclode com uma certa potência, com uma certa virulência, de tal forma que põe em risco a própria organização da sociedade. Esses momentos a gente chama de questão social.”

Eu acho que num dado momento surgem duas questões sociais nítidas durante essa pandemia [da Covid-19], a questão da pobreza e da miséria, muito fortemente. E essa questão da pobreza e miséria que foi de uma maneira absurda chamada pelos economistas de “os invisíveis”. E de repente apareceram todos os invisíveis que a sociedade não queria ver, e aparecem como uma questão disruptiva, uma questão social. Para isso que se criou o auxílio emergencial e se discutem hoje saídas para continuidade de algum tipo de renda básica para essa população.

Então essa é uma questão que apareceu como uma questão social, que teve um enquadramento político, uma resposta política até o momento temporária, até porque está condicionada à questão do teto dos gastos, do liberalismo. Mas as questões sociais, elas mobilizam, movimentam, e requerem uma ação: uma ação pública do governo, da sociedade, para dar uma resposta para o novo enquadramento dessa questão. Já em relação à questão da favela, eu percebo que num dado momento, houve uma mobilização muito grande, uma visibilidade muito grande das condições de vida na favela e tudo mais. Mas essa questão, me parece, vai diminuindo a sua presença na agenda pública e vai sendo subsumida pela questão da miséria, porque a favela não é só uma questão de maior poder ou menor poder de consumo. Essa é uma questão também, mas você tem questões urbanas, de saneamento, de reconhecimento de direitos, de discriminação racial que estão envolvidas nesse território de exclusão e também de reivindicações e de insurgências. Então, a minha pergunta é essa: qual é a capacidade da questão da favela se tornar efetivamente uma questão na agenda política que vá requerer uma ação do Estado, da sociedade? Então, voltando às questões, é isso: que tipo de insurgência é essa cidadania? Que tipo de ideologia, que tipo de politização tem esses grupos? E qual é a sua capacidade de mobilizar recursos políticos e definir o novo enquadramento da favela dentro da cidade?”

Itamar Silva, Associação Escolas Sem Muros – Grupo Eco

A minha questão consiste exatamente em pensar em que medida o que estamos vivendo agora – uma ampliação da visibilidade de iniciativas locais – tem sustentabilidade no pós-pandemia? E o que isso carrega como acúmulo, como reflexão, como ensinamento para que a gente possa dar um salto olhando para essa relação política pública e favela, para a própria conceituação do que é a favela na cena urbana brasileira?

O que está me provocando é pensar para além dessas iniciativas –que eu acho super bacanas e fico assim verdadeiramente orgulhoso de ver vários jovens, mulheres, homens, negros, batalhando, trazendo a questão racial para frente das suas ações, articulando isso com a necessidade de mobilizar cesta básicas, álcool em gel, tudo isso é emocionante ver. Por outro lado, eu tenho muitos anos nessa estrada aí de acompanhar a favela e fico pensando: E o amanhã? O que dessa experiência a gente vai poder contabilizar num processo pós pandemia?

Por que eu questiono isso? Porque eu digo, muito honestamente, eu não vejo nas ações nenhuma proposta de transformação, nenhuma proposta que aponte para novas possibilidades. Primeiro, eu acho que é muito difícil, não é demérito de nenhuma iniciativa, porque a luta agora é pela sobrevivência, pela proteção. Então nesse sentido, isso que tem que ser feito, é isso mesmo. Usando a expressão do Betinho “quem tem fome, tem pressa”. Então, a gente tem uma pressão e uma necessidade que é preciso responder a isso. Ok. Mas, se a gente pensar que a maioria dessas iniciativas dependem de apoio, de estrutura, então a gente não pode abrir mão de apontar de quem é a responsabilidade da manutenção, por exemplo, de um serviço de saúde primária nas favelas. Eu vejo pouca crítica à essa estrutura, por exemplo, da ação da prefeitura a partir das Clínicas da Família.

Tem uma diferença muito interessante, eu acho. Todo o Complexo do Alemão, Complexo da Maré e Manguinhos – talvez em razão da proximidade com a Fiocruz e por uma atuação mais efetiva da instituição -, tem respostas diferentes de outras localidades. Se a gente acompanhar, mesmo a Rocinha, que tem unidade de saúde, a gente viu a disputa com a prefeitura pelo tomógrafo. O que que foi aquilo? Você instalar um tomógrafo na Igreja Universal do Reino de Deus, numa favela que tem três unidades de saúde, tem uma estrutura de saúde histórica ali e a população não consegue reverter uma decisão política da prefeitura. Por quê? Porque também essa visão estava no seio da própria favela, você tinha lideranças da Rocinha, algumas que tem seus compromissos, defendendo o outro lado. Então, isso para mim é indicativo de que a gente não conseguiu como coletivo entrar no debate e tentar mostrar aí que mais uma vez, mesmo em área de muita organização local, você não consegue reverter os vícios e o jogo político que está colocado.

A outra questão que eu fico pensando também é: qual é o lugar da favela nessa cidade? Ou, qual é o lugar da favela no imaginário desta cidade? E aí eu estou indo além, não só nessa relação direta com o poder público, mas com a própria população. Que lugar a gente ocupa como elemento urbano, histórico na cidade? Que lugar a gente ocupa no imaginário da cidade?

A minha sensação é que não mudou, que a gente continua sendo o outro indesejado desta cidade. Eu costumo dizer que há uma percepção de que em algum momento, talvez, nós vamos desaparecer, seja pela enxurrada, pelo desastre, seja pela guerra entre eles, seja por qualquer outro elemento. Em algum momento isso vai acontecer porque só isso justifica um distanciamento, uma dificuldade de você ter uma aliança efetiva desta cidade na defesa das vidas na favela, em relação aos jovens que morrem, em relação às condições sanitárias e tudo isso.

Qual é o lugar que a favela ocupa no imaginário dessa cidade? Será que a gente mudou ou conseguiu dar algum passo adiante nesse momento de pandemia? Será que as matérias positivas que apareceram no noticiário mostrando essas iniciativas estão contribuindo para mudar a percepção daqueles que moram fora e mesmo de alguns que moram dentro da favela, mostrando que a favela tem potência, tem possibilidade? Eu acho que a gente vai ter que olhar isso um pouco mais à frente. Eu fico me perguntando até que ponto isso se constitui realmente em um elemento de reconstrução.

Apesar dessas questões todas, eu acho que a gente está vivendo um momento bem interessante com essa multiplicidade de iniciativas, uma presença da juventude muito forte, uma presença que vem com um conteúdo, uma bagagem enorme. Não é à toa que a gente tem os coletivos universitários um pouco fazendo essa ponte entre a favela e a universidade, fazendo a crítica a partir de uma produção do lugar de conhecimento muito forte. Como é que a gente aproveita esse momento ou quais links são possíveis para que a gente crie uma arena, um lugar que a gente possa conversar sobre isso? Conversar mesmo, porque eu posso falar com veemência mas eu não tenho nenhuma certeza, mas são questões que me incomodam, que estão me preocupando. E eu acho que isso deveria também preocupar a outros, e a gente trocar figurinhas para tentar descobrir como é que a gente pode sair desse momento com um saldo positivo do ponto de vista organizativo, para além de nossas lutas identitárias, de nossas lutas específicas. Que a gente possa junto com isso identificar o que coletivamente a gente quer defender em relação a esse território chamado favela, nessa relação com o resto da cidade.

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