Pipateria: instrumento e fundamento para a cultura suburbana

Carolina Fernandes é indígena urbana, historiadora, fotógrafa e artista independente. Nascida e criada em Bento Ribeiro, zona norte do Rio de Janeiro, seu trabalho tem como foco as narrativas suburbanas para além do óbvio: registra as mais diversas manifestações cotidianas e de resistência nesses locais, buscando um olhar crítico, humano e artístico sobre identidade e pertencimentos no dia a dia.

O presente ensaio é o segundo de uma série intitulada “Lazer e subúrbio carioca” que buscará tratar o lazer como categoria da saúde humana. O recorte espacial é o subúrbio carioca, com foco na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro.

Os registros abaixo foram produzidos em Bento Ribeiro, na rua Adalgisa Aleixo, em dois momentos: o primeiro, em maio de 2022; e o segundo, em agosto de 2023. As imagens narram a importância da pipa como instrumento, tanto na infância, quanto na vida adulta.

Em maio do ano passado, fotografei um evento conhecido como Pipaterapia que acontece uma vez ao mês na minha própria rua. Eram diversos homens que se organizam em grupos para “brincar de pipa”. Eles me contaram que a pipa funciona como uma espécie de terapia mesmo, como um momento para espairecer, se divertir, reencontrar amigos, reforçar laços e, para alguns, passar essa cultura para os filhos que já os acompanham. No entanto, há toda uma estrutura por trás dessa brincadeira.

Os grupos são organizados por localidades e há projetos de leis que versam sobre espaços destinados para a brincadeira em diversas cidades do país, incluindo o Rio de Janeiro. Esses espaços são os pipódromos. Várias dessas pessoas têm contato e participam de reuniões no objetivo de conseguir políticas públicas que garantam a continuidade do “brincar de pipa” de maneira segura para que se evite acidentes.

Além disso, a pipa também funciona como sustento. Nas fotos realizadas em maio, tive a oportunidade de conhecer e registrar o Seu César (o homem com boné do Botafogo) que é um artesão de pipas. Ele vai de evento em evento, de rua em rua, de bairro em bairro, produzindo e vendendo suas pipas para sustentar sua família. E ainda me garantiu que tem o melhor produto da região!

As fotos de agosto deste ano já narram a pipa na infância. Fotografei uma criança que mora na minha rua e diariamente solta pipa em frente ao meu portão. Às vezes acompanhado, às vezes sozinho, mas sempre por lá. Frequentemente o vejo brincando, disputando, ganhando e perdendo. Neste dia mesmo, quis me mostrar suas pipas novas e o jeito que ele está “dibicando” a linha, que é uma espécie de movimento muito específico que se faz para a pipa “dançar no céu”.

Os costumes de um local não apenas formam o conjunto cultural daquele espaço, mas permitem camadas no cotidiano daquela população. Um objeto tão simples e corriqueiro como a pipa dá a oportunidade do trabalho para o Seu César, e de participação política para aqueles que se engajam na causa dos pipódromos. E proporciona oportunidade de vínculos sociais quando as pessoas se organizam e se juntam, inclusive nas relações de pais e filhos que passam de geração a geração esse costume. E também reforça o pertencimento das crianças aos seus locais de origem, a socialização entre elas e a afirmação de sua identidade naquele espaço. Muitas vezes o lazer, além de uma categoria de saúde em si, ainda funciona de maneira mais profunda porque entretenimento gera emprego, gera vínculo, gera engajamento e gera pertencimento.

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