Psicologia e escuta no cárcere

Helbert de Almeida, psicólogo, arte educador, professor de yoga e ativista dos direitos humanos.

1 DE AGOSTO DE 2022

Coloquei os pés pela primeira vez dentro do Complexo Penitenciário Lemos de Brito, quando fui convocado a assumir a função de estagiário junto ao setor Psicossocial do Complexo Penal Feminino da Mata Escura.

Não posso deixar de sublinhar, a priori, que parte da minha infância e o início da minha alfabetização se deu em tal bairro, território negro, marginalizado e que, desde sempre, protagoniza eventos de violência na capital.

Chegar ao presídio era sempre custoso, mas o trajeto me era agradável. Saía quase sempre da Universidade Católica, tomava um ônibus da linha Estação Pirajá/ Itapuã e, então, desembarcava na porta da penitenciária. Entrava, me dirigia ao portão da entrada principal, já do Complexo Feminino, saudava os (as) colegas policiais penais, deixava meus pertences na sala ao lado e só assim seguia em direção às grades.

Foto: Acervo pessoal Helbert de Almeida

A ESCUTA NO CÁRCERE

Minha passagem foi breve: exatamente 11 meses. Contudo, o suficiente para entender o funcionamento mínimo de uma sociedade gerida e parida colonialmente, logo, heteropatriarcal, imperialista, misógina e racista.

No meu primeiro atendimento, uma interna se apresentou como “puta, preta e pobre” e me questionou, portanto, porquê eu gostaria de escutá-la. Eu, em minha defesa, lhe respondi que acredito que a fala e a escuta possibilitam que atravessemos algumas angústias de maneira mais humanizada, e promove o mínimo de dignidade a quem passa pelo cárcere. Ela me devolveu a questão e disse que precisaríamos de um divã na sala para que ela deitasse e eu pudesse escutar a sua história.

Desse primeiro encontro, surgiram questionamentos profundos em torno do meu exercício enquanto estagiário de psicologia e sobre o praticar psicanálise no cárcere. Como se pratica psicanálise numa instituição fiscalizadora e punitivista? Como se lê o inconsciente de subjetividades encarceradas? Quais são os significados e significantes que operam no inconsciente coletivo desse território penal? Como escutá-las?

Elaborei a estratégia de mapear as internas transferidas de outras unidades penais, algumas do interior ou de outros estados, porque provavelmente estas sofriam de abandono familiar, tendo o apoio apenas da mediação de um(a) defensor público e/ou dos serviços psicossociais.

Escutá-las — as chamarei de “abandonadas” — era mais do que oferecer apenas a escuta. Era acolher demandas do serviço social, tentar contatar possíveis parentes, cobrar um parecer do processo com um advogado ou um defensor público e, quando fosse preciso, fazer encaminhamentos para a psiquiatria ou medicina.

Nessas escutas, apareciam muitas queixas de violência doméstica na infância, na vida adulta, vulnerabilidade social, abusos sexuais, e o mundo do trabalho e do crime. Sempre me esforcei para não me apegar ao artigo do processo, lendo o prontuário apenas no final de cada atendimento para não me contaminar com as informações e nem influenciar a minha escuta. Escutava a angústia, ao me perguntarem se aquele modelo de cárcere ressocializa e a quem?

Atravessei alguns lutos em conjunto com mulheres que morriam de saudades de seus filhos(as) e mães, ou as que perderam familiares durante a pandemia e/ou o contato devido ao interrompimento das visitas. Se o que sustenta uma psicoterapia é a transferência — conceito psicanalítico para dizer sobre a relação terapêutica entre analista e analisando —, no complexo feminino, fiz transferências com algumas que, ao me reconhecer negro, sentiam-se à vontade o suficiente para denunciar o racismo religioso contra mulheres que praticavam ou se identificavam com religiões de matriz africana dentro do cárcere.

Na medida em que fui aprimorando o meu “fazer”, fui percebendo que a escuta, enquanto dispositivo psicoterapêutico, poderia também servir de via para a garantia do direito de dignificar o sofrimento, ou seja, possibilitar que a interna pudesse elaborar a dor da privação de liberdade, repensando suas estórias para além do crime. Porém, só a escuta não dava conta de estancar, ainda que brevemente, a sangria que o cárcere provoca.

Foto: Acervo pessoal Helbert de Almeida

O YOGA

Então, decidi promover uma prática de yoga com o apoio do serviço social. Em reunião, decidimos que as internas contempladas seriam que não podem conviver com as demais por correrem risco de morte, em virtude de terem cometido crimes contra crianças ou idosos e/ou fazerem parte de facções rivais.

Durante a primeira prática de yoga, constatei que a maioria delas não conseguia mover as mãos, alongar os dedos, alongar as pernas, relaxar os ombros, e foi onde percebi que o sujeito encarcerado vai perdendo a sensibilidade de reconhecer o próprio corpo. Foram muitas as vezes em que precisei dizer: solta os braços, não precisa deixar as mãos para trás, levanta a cabeça e olha para o alto… E esses eram os momentos mais desafiadores da aula. Todas começavam um riso coletivo por olhar umas às outras, e eu cedia um pouco minhas próprias resistências e me envolvia com a risada coletiva.

Nesse sentido, a proposta das práticas de yoga vingou. Era notório, inclusive, nos atendimentos de escuta, quando as percebia com o falar mais desinibido. As aulas reverberaram, inclusive, entre as agentes penais, quando me relataram que depois do yoga algumas estavam mais tranquilas.

Faltando poucos meses antes de encerrar o meu contrato de estágio, as mulheres atendidas pelo projeto organizaram um abaixo assinado para que eu permanecesse na unidade e seguisse oferecendo práticas de yoga. Logo depois, soube que as internas do pátio também se mobilizaram e fizeram um abaixo assinado pedindo para que eu continuasse com os atendimentos. Ambos, para serem entregues à diretora da unidade e à juíza que as visitavam uma vez por mês.

Foto: Acervo pessoal Helbert de Almeida

PSICOLOGIA E CÁRCERE

A depender do dia, chegar até a sala do psicossocial era o desafio do dia: “doutor, por favor, me chame, meu nome é fulana”. “Ei, o senhor me chama hoje? O senhor disse que ia me chamar…”. Entendi durante a rotina que havia muitas demandas e de diversas ordens. Às vezes, algum atendimento se dava no corredor, quando uma interna me via passar e aproveitava a oportunidade para relatar que estava muito trêmula, sem conseguir levar uma colher à boca devido aos medicamentos, questionando se eu poderia revisá- -los. Eu sempre tinha que explicar que não era psiquiatra, mas iria solicitar uma consulta com o especialista.

Durante o percurso de estágio, senti falta de um trabalho interdisciplinar, isto é, um diálogo entre psicologia, serviço social e psiquiatria, a fim de melhor atender as demandas das internas e acompanhá-las em toda sua complexidade sócio-histórica. Sabemos que como herança colonialista, escravagista e heteropatriarcal, mulheres negras e indígenas eram/são assujeitadas a níveis inumanos de dor e exploração pelo trabalho, como mulas de cargas outrora, ou até mesmo nas salas de parto, quando acredita-se que tal mulher não precisa de anestesia por ser mais forte e não sentir dor. É a própria animalização da mulher negra, indígena, latina. É perceptível a mesma lógica sendo operada no cárcere, quando as mulheres de pele mais retinta, são as que mais padecem de sofrimento psíquico e corporal.

Portanto, se propor a atuar no cárcere significa confrontar os próprios limites da profissão e retomar nossos princípios éticos de garantir direitos e liberdade. Mas como abordar o tema liberdade no cárcere?

Proponho que retomemos o trajeto de luta e conquistas da psicologia enquanto disciplina científica que batalhou por sua autonomia e para desvincular-se de uma área que estava a serviço do Estado para adaptar, educar e ajustar os civis rebeldes. A psicologia nunca se intimidou e nem aceitou a ser uma disciplina científica que colocava o sujeito certo no lugar certo, pelo contrário, ela sai às ruas, rompendo com a lógica do privado, e torna público os seus serviços, entendendo agora o sujeito sócio-histórico e ampliando o conceito de saúde mental, vinculado, antes, apenas ao tratamento em consultórios clínicos para quem pudesse pagar.

Por isso, proponho, ainda, que todo o formando em psicologia seja introduzido aos equipamentos públicos como: SUAS, SUS, CAPS, presídios e outros; acredito que é escutando os territórios que pode surgir algo radicalmente novo; que tomemos também o front da batalha para ir à luta contra a misoginia, a LGBTQIA+fobia, contra o trabalho análogo à escravidão, contra o racismo, contra o genocídio indígena e de juventudes negras; e que nos abstenhamos do suposto poder ao saber, e tracemos estratégias éticas, críticas e políticas para combatermos a agenda neoliberal, seja de direita ou tidas progressistas de centro-esquerda, mas que operam a mesma lógica de encarcerar em massa, de tentar diminuir a maioridade penal, de asfixiar a liberdade das juventudes periféricas, e de selecionar vidas matáveis ou não.

Não sejamos complacentes com projetos que criminalizam a pobreza e que são antidemocráticos. Lembremos: “onde há poder, há resistência”.

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